domingo, 8 de julho de 2012

Oração, fonte de espiritualidade

Por Frei Almir R. Guimarães, OFM

2482_050612Começamos com um pensamento do cardeal Martini, antigo arcebispo de Milão e incentivador de grupos seletos de Leitura Orante da Bíblia em sua diocese: “A oração é, antes de tudo, resposta à Palavra de Deus que, por primeiro me interpela e me atinge em minha fraqueza, mas também no meu silêncio e na minha capacidade de escuta. A oração é deixar-se acolher pelo mistério santo indo pelo Cristo, no Espírito, rumo ao Pai. Mais do que rezar a um Deus estranho e longínquo, o cristão reza em Deus, reza escondido com Cristo na Trindade, fonte e germe de vida. Então, quando rezares, antes de pensar que és tu que amas a Deus, deixa-te amar por ele, docilmente, cegamente, abandonando-te totalmente a ele, tudo lhe confiando, num espírito de louvor e de ação de graças. Comigo, pergunta a ti mesmo: será que eu encontro momentos em que me coloco face a face com Deus, ouvindo-o e abrindo-me a ele? (Carta Pastoral de 1996). Rezar é deixar-se acolher pelo Mistério. Onde? Na vida, de modo especial na ruminação dos salmos, na meditação antes da aurora explodir, nos dias de retiro que sejam efetivamente de retiro, na tentativa de instaurar grupos sólidos de leitura orante da Palavra.

Na linha da escuta da Palavra e oração, um pensamento do Ministro Geral dos Frades Menores: “Se rezar é entrar em relação pessoal com Deus, escutá-lo, far-lhe-a agir segundo Deus na Escritura, o Pai que está nos céus vem carinhosamente ao encontro de seus filhos e com eles fala. Se rezar é responder a Deus depois de tê-lo escutado, na proclamação ou leitura da Palavra o escutamos e lhe respondemos quando devolvemos a Deus a palavra que ele mesmo nos entregou. Se rezar é fazer a experiência de encontro com o Senhor, toda a Sagrada Escritura é uma história de encontros: a grande epopeia do encontro de Deus com os homens e do homem com Deus” (Fr. José Rodriguez Carballo, OFM. Guiados pela Palavra/ Mendicantes de Sentido, n. 12). Ora, o discípulo que ama o Senhor vive na frequência e na persistência desses encontros suculentos com a Palavra no mistério da oração. E na oração responde aos sinais amorosos do Esposo.

No dia a dia da vida, o homem não está espontaneamente em consonância com o Senhor. A vida interior cristã é muito mais do que um fenômeno psicológico, de experiência ou contágio de massa, uma exacerbação nervosa da voz e dos gestos. A compreensão definitiva da oração vem da frase lapidar de Paulo aos Gálatas: “Deus enviou aos nossos corações o espírito de seu Filho, que clama: ‘Abba! Pai’ (Gl 4,6)”. Para entrar e perseverar na vida de oração temos que ter a convicção de sermos habitados pelo Espírito que clama, murmura, inspira, respira, intercede e adora no coração humano. A oração é tarefa do Espírito que habita em nós e no coração da Igreja. Michel Hubaut, refletindo sobre a oração de São Francisco, assim escreve: “O Espírito Santo ocupa um lugar importante nos escritos de São Francisco que falam com frequência das “visitas” do Senhor” e da “inspiração” de Deus. Para ele, a vida de oração não é em primeiro lugar alguma coisa que faço, mas uma presença que recebo. Presença que é mais poderosa do que nossos pobres esforços ou sentimentos humanos, que não depende da riqueza de nosso vocabulário nem de nossas formas de viver. As biografias de Francisco estão pontilhadas de expressões chaves como as seguintes: “Movido e fortalecido pelo Espírito”, “no fervor do Espírito”. O segredo da fecundidade de sua vida apostólica e contemplativa é, sem dúvida alguma, sua disponibilidade à ação do Espírito em seu interior. Boaventura escreve: “Toda sua vida interior foi hospitalidade total ao Espírito, uma perfeita docilidade a seus ensinamentos” (cf. Michel Hubaut, El camino franciscano, Estella (Navarra), 1984, p. 54).

Sim, não se trata de praticar uma oração mecânica, formal, legalista. Homens e mulheres que vivem no mundo, religiosos contemplativos, consagrados preocupados com a evangelização, entramos na movimento do Espírito. Simples, sinceros, fraternos vivemos em comunidades ou fraternidades e vamos nos esvaziando de nós mesmos e deixando de lado acertos que mais são desacertos e esperamos juntos, na humildade e na confiança, que o Espírito que vive em nós possa nos apontar para o amanha da paróquia, da vida consagrada da Igreja. O Espírito Santo abriu os horizontes de Francisco para um porvir imprevisto. Desperta-se em Francisco uma faculdade interior e ele descobre: o homem está dotado de um sentido interior que ele chama de coração. Se custa ao homem entrar em relação com Deus é porque perdeu o sentido do coração. Francisco encontrou um caminho novo em que o Espírito se une ao nosso espírito.

Já insistimos na questão do desejo. Sem desejo de Deus não há oração. Santo Agostinho já dizia: “Um desejo que clama por Deus já é oração. Se queres rezar sempre, nunca deixes de desejar”. Não há dúvida. Cada um organizará sua vida de oração comunitária e pessoal. Temos que consagrar tempo à oração: leitura de um breve texto bíblico, repetição muito singela de palavras que dirigimos ao Senhor que nos ama e nos vê, manter-nos em silêncio num canto, deixando que nosso corpo expresse sua espera por Deus e por sua visita. Há, é claro, esses momentos longos e demorados de aridez e de desgosto na oração: “O tempo que consagro à oração não é tempo que experimento proximidade especial de Deus. Nem consigo fixar minha atenção nos mistérios divinos. Quem dera que assim o fosse! Pelo contrário, os momentos que reservo para a oração estão cheios de distrações, inquietude interior, sonhos, confusão e enfado. Raramente vejo meus sentidos gratificados. Mas o simples fato de me colocar na presença do Senhor e mostrar-lhe tudo o que sinto, percebo e experimento, sem nada esconder, que devo agradar a Deus. No meio de tudo isso, sei que ele me ama mesmo que eu não sinta seu abraço como um abraço humano e não ouça sua voz como ouço uma voz humana” (Henry Nouwen). Vivemos a cultura do entretenimento. Quando não fazemos nada temos a impressão de viver tempos vazios. Por isso fugimos desse “tempo perdido” que para muitos é o tempo da oração. Expressar a Deus nossa espera por ele com palavras simples e mesmo com silêncio pode dar a impressão de ser tempo perdido. Nesses instantes estamos dando tempo ao Senhor para que ele transpareça na trama dos acontecimentos. Sem o que somos seres banais. Sem o que, como cristãos ou religiosos, simplesmente fazemos rodar a máquina fria da organização. Vidas sem alma.

O ser humano não foi feito para a mediocridade. Ele é chamado a transcender-se. Não pode perder-se numa horizontalidade de posse ou da satisfação imediata de seus desejos no âmbito do que vai conseguindo obter e ter. Foi escolhido para ruminar no coração a semente da Palavra que aí foi lançada. O orante é aquele que se aplica com zelo à leitura amorosa da Escritura. Os que permanecem na palavra dizem palavras boas, têm um coração bom. Desta forma, vive uma vida em abundância, que vai da ação de graças à súplica até a contemplação. Os cristãos que rezam de verdade atingem maturidade. São seres unificados pelo Espírito. Thomas Merton: “A contemplação é uma compreensão profunda do fato de que, em nós, a vida e o ser procedem de uma Fonte invisível, transcendente e ilimitadamente abundante. A contemplação consiste em ter consciência dessa Fonte… É ser tocado por aquele que não tem mãos, mas é Realidade pura e fonte de tudo o que é real”. Os corações humildes e pequenos ouvem a Palavra e são capazes de alojá-la no mais íntimo de suas vidas, no dia a dia de suas existências e na perseverança àquele que é ontem, hoje e amanhã.

Encerro estas reflexões transcrevendo linhas de advertência do Ministro Geral dos OFM sobre a vida de oração: “Penso que seja indispensável avaliar o âmbito (tempo e modalidade) da oração mental no projeto de vida pessoal e fraterna. A fidelidade aos horários e a perseverança são indispensáveis para a vida de oração. Considero também fundamental avaliar com seriedade nossa prática sacramental – Eucaristia e Reconciliação - como também a qualidade e até a frequência de nossas celebrações eucarísticas e a fidelidade à celebração da Liturgia das Horas, conscientes da diferença que existe entre dizer o Ofício divino e celebrar a Liturgia das Horas. Como a vida fraterna, também a vida de oração precisa ser submetida a uma regular avaliação. Seu crescimento depende de uma crítica construtiva: tempo, ritmo, sentido do sagrado. Trata-se de fundamentar o projeto franciscano no tempo de Deus e de convertê-lo numa experiência orante” (Com lucidez e audácia, n. 28)

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