sábado, 14 de julho de 2012

O viver das Irmãs em São Damião

Por Frei Almir R. Guimarães, OFM

Estamos nos abeirando das comemorações dos oitocentos anos do carisma clariano que serão celebrados de modo particular da cidade de Canindé (CE), nos dias 9 a 11 de agosto de 2012. Fernando Felix Lopes, português, escreveu uma das encantadoras biografias de São Francisco que conheço. Deu-lhe o título de O Poverello. São Francisco de Assis (Ed. Franciscana, Braga, 5ª. ed, 1996). No intuito de nos colocar no espírito das comemorações clarianas transcrevemos umas poucas páginas deste autor que nos falam da vida das irmãs em São Damião e dos últimos dias daquela que se definia como “plantinha” do Seráfico Pai. Os leitores não encontrarão novidade alguma, mas poderão saborear o jeito charmoso português de dizer as coisas mais simples da vida.

O que foi o viver das irmãs ali recolhidas em São Damião, não é fácil de contar. A Regra de vida era o Evangelho, nem Francisco soubera ditar outra.

Com as rezas, o trabalho para o pão de cada dia. E nos casos em que o trabalho não dava, sentavam-se a comer, à “mesa do Senhor”, a caridade da esmola pedida de porta em porta. O ideal poeticamente exemplificado por Francisco nas avezinhas do céu e nos lírios do vale, traduziram-no as freiras em forma comum de viver.

Clara aos pobres mandara distribuir seu patrimônio, e as outras irmãs de modo semelhante procediam. Professavam a pobreza absoluta que liberta a alma, a desamarra do egoísmos que prendem e dos cuidados que consomem. Clara, a pobrezinha, era o modelo; quando Francisco a olhava, com certeza, via nela o rosto da madona Pobreza.

O único privilégio que desejou dos Papas foi o privilégio de não ter nada. Quando o requereu a Inocêncio III, na chancelaria pontifícia nem sabiam como redigir o documento para satisfazer tão insólito e original pedido.

Esses passos da Regra escrita por Santa Clara e aprovada pelo Papa na véspera da sua morte, deixam-nos entrever a devoção com que ali se adorava Sóror Pobreza, que São Francisco fizera a sua dona.

“O Altíssimo Pai celeste se dignou alumiar o meu coração para que, seguindo o exemplo e doutrina de nosso bem-aventurado Pai (S. Francisco), fizesse penitência; pouco depois da sua conversão, juntamente com minhas irmãs voluntariamente lhe prometi obediência. E vendo o bem-aventurado Pai que nenhuma pobreza nem trabalho, nem tribulação, nem desprezo do mundo temíamos, mas antes com grande contentamento levávamos estas coisas, movido de piedade nos escreveu forma de viver em esta maneira: Porque, por inspiração do Senhor, vos fizestes filhas e servas do Altíssimo e Sumo Rei o Pai celeste, e por graça do Espírito Santo destes de viver segundo a perfeição do santo Evangelho, quero e prometo, por mim e por meus frades, sempre ter de vós, como deles, cuidado diligente e especial solicitude.”

“E assim como fui sempre solícita, juntamente com minhas irmãs, em seguir a pobreza que prometemos ao Senhor e ao bem-aventurado São Francisco, assim observem as abadessas que depois de mim vierem: a saber, que não recebam nem tenham possessões ou propriedades por si nem por interposta pessoa, nem qualquer outra coisa que possa chamar-se de propriedade, se não somente quanta terra se requer para honestidade e conserto do mosteiro, e essa terra não se lavre como horta para as necessidades das irmãs”.

Quarenta anos ali viveu Clara. O coração anda-lhe cheio do Evangelho. Tanto, que é nele que São Francisco procura alumiar de certezas os caminhos da vida, nas horas aflitas de suas dúvidas. Vem-lhe o desassossego ao coração, e já não sabe que mais agrade ao Senhor: se a recolhida oração longe do mundo, se o apostolado entre os homens. Por sua ordem vai Frei Masseu ler no coração de Santa Clara os desígnios da Providência e torna com a resposta: – “Vai pelo mundo anunciar aos homens o Reino dos céus”.

Por longe, outros mosteiros vão surgindo a recolher donas e donzelas que trocam as riquezas e os gozos do mundo pelas alegrias simples do Evangelho. Clara traduz para o feminino os ideais largos e viris do Poverello, e no seu pobrezinho mosteiro de São Damião é ela o modelo e forma de vida que todas procuram imitar.

A piedosa caridade doméstica, esta virtude que muitos, em família, julgam cumprir borrifando de fel a vida de todos, praticava-a com requintes de ternura: as ocupações mais humildes da casa eram para ela momentos de oração, lavava os pés das irmãs serventes quando chegavam dos trabalhos por fora, cuidava das enfermas, nas noites frias do inverno andava solícita a agasalhar as irmãs, era ela quem despertava à noite para matinas, e ela mesma acendia as luzes das escadas e espevitava a lâmpada da capela. Doente desde os trinta e um anos, nunca perdeu o hábito do trabalho, nunca amaciou os rigores da pobreza, nunca perdeu a coragem nem a alegria de viver.

Em 1228, o papa Gregório IX vem a São Damião a teimar com ela para que amenize os rigores da pobreza, e oferece-lhe rendas para sustentar o mosteiro. Recusa com vigoroso respeito as solicitudes do papa; e quando este lhe propõe que se os escrúpulos lhe vêm do voto que fizera, dele a desliga dispensando-a, ei-la que responde: – “Santo Padre, desligue-me dos meus pecados, isso lhe peço; agora de seguir até à morte o Cristo pobre, de tamanho favor não desejo dispensa”.

Em setembro de 1240, os sarracenos dos exércitos imperiais, passando por Assis, escalam os muros do mosteiro. Clara levanta-se de seu leito de enferma, manda às irmãs que lhe tragam a custódia com o Santíssimo Sacramento, e todas de joelhos, implora ela: -“Guarda, Senhor, este pequenino rebanho que os lobos assaltam, pois eu já não o posso defender”. E Jesus responde: “Sossega, filha, que sempre o guardarei”. E os sarracenos fogem em debandada.

Um ano depois, Vital de Anversa torna com os exércitos imperiais a sitiar Assis, - “Muitos benefícios devemos à nossa cidade, é agora o tempo de lhos pagar”, diz Clara. Cobre-se de cinzas todas as irmãs com ela; jejum a pão e água, sem outra coisa a comer, e ferventemente imploram a proteção de Deus para a cidade aflita. E no outro dia Vital levanta o cerco e retira com seu exército.

No leito da agonia, trazem-lhe a bula de Inocêncio IV a aprovar a Regra e a Pobreza. Pega dela e beija-a. Uma alegria imensa lhe inunda o rosto. À sua volta Frei Junípero, Frei Ângelo e Frei Leão são ali a presença de Francisco que há muito voara para o céu. - “Que notícias me trazes de Deus?” pergunta a Frei Junípero. E o frade simples, o jogral do Senhor, tem nos lábios palavras divinas que mais lhe enchem de alegria o coração.

É a hora extrema. Sente que a alma começa a ausentar-se: – “Vai segura, tens bom guia para a caminhada. Quem te criou, Ele mesmo te santificou e te amou mais do que a mãe ama o o seu filhinho. Bendito, Senhor por me haveres criado!”

Era 11 de agosto de 1252 quando a sua alma partiu nos braços da morte, a cantar louvores ao Senhor que lhe dera a vida.

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