quinta-feira, 7 de outubro de 2010

FRANCISCO DE ASSIS UM HOMEM DE PAZ FORMADO PELA LITURGIA


s_francisco2 Por Pietro Messa
 
A vida de Francisco de Assis, como acontece para todo homem, sempre será, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede de continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui. Justamente nessa perspectiva é que se está reconhecendo o papel importante, para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco
Não podemos deixar de reconhecer que, em certo sentido, Francisco de Assis teve um destino invejável se comparado a outros santos: declarado em 1992 pela Time Magazine um dos homens mais representativos do segundo milênio, estudado por centros de pesquisa universitários leigos e não leigos, objeto de inúmeras publicações científicas e de divulgação inerentes a sua história, com diversos filmes a ele dedicados, reconhecido como referência ideal por pessoas de diversas culturas e religiões. A tudo isso se acrescente a escolha de Assis, a cidade de São Francisco, por João Paulo II, para o histórico dia de 27 de outubro de 1986, que deu início ao chamado “espírito de Assis”, movimento inter-religioso em favor da paz; o Pontífice lá voltou ainda em 9 e 10 de janeiro de 1993 e, apesar das inúmeras reservas e da perplexidade diante da oportunidade dessa iniciativa, em 24 de janeiro de 2002, ou seja, depois dos atos terroristas de 11 de setembro de 2001.
Vemos, portanto, um São Francisco muito valorizado. E, ainda que o dia de sua festa, 4 de outubro, na Itália, não se tenha tornado festa nacional, seu nome é de certa forma sinônimo de diálogo intercultural e inter-religioso. Todavia, todos sabemos que a fronteira entre ter sucesso e ser inflacionado é muito sutil, e isso vale também para o santo de Assis.
Os estudos franciscanos avaliaram as fontes inerentes a sua experiência cristã, enquanto numerosos estudiosos continuam a tentar aperfeiçoar o conhecimento dessas fontes a fim de descobrir o rosto desse santo, superando todas as imagens hagiográficas ou manipulações ideológicas. Têm-se aprofundado os estudos sobre sua formação cultural e espiritual, reconhecendo-se nela diversas estratificações, a saber: a cultura do filho do mercador; uma ideologia cavaleiresca que o conduzia a assumir ideologicamente os trajes do cavaleiro; a cultura cortês que continuou mesmo depois de sua conversão; o elemento evangélico e até as reminiscências das antigas vidas dos Padres do deserto1. Diante desses numerosos estudos, cujo início se reconhece em Paul Sabatier, parece que hoje, a respeito do frei Francisco de Assis, filho do mercante Pedro de Bernardone, não haja mais nada a aprofundar. A imagem mais divulgada, porém, parece não apenas inflacionada, mas, por vezes, tem-se a sensação de que lhe faltem alguns aspectos importantes, quando não é vítima de alguma operação ideológica instrumentalizante. Certamente, como acontece para todo homem, também a vida de Francisco de Assis será sempre, em certo sentido, um mistério. Reconhecer isso não impede, porém, de continuar a aprofundá-la, graças também aos resultados já alcançados até aqui. Justamente nessa perspectiva vem sendo reconhecido um papel importante, para não dizer fundamental, da liturgia no itinerário de Francisco.
1. Um período de reforma litúrgica
A época em que viveu Francisco foi de grandes mudanças e transformações culturais: o desenvolvimento das comunas, o nascimento das universidades, o incentivo aos intercâmbios comerciais, o surgimento de novas exigências religiosas, que muitas vezes desembocaram na heresia, mas também em movimentos pauperistas. Todos esses aspectos normalmente são levados em consideração pelos estudiosos mais perspicazes, quando enquadram historicamente a vida de Francisco de Assis. Todavia, é quase totalmente negligenciada a consideração de que aqueles anos foram um dos momentos nevrálgicos da história da liturgia. De fato, se tomarmos um manual de história da liturgia qualquer, poderemos constatar que Inocêncio III deu início a uma reforma da liturgia da Cúria Romana cujos resultados, justamente por intermédio dos Frades Menores, se difundiram por toda a parte, a ponto de serem ainda hoje o elemento caracterizante da liturgia latina de rito romano. ´
No início do século XIII, em Roma, existiam fundamentalmente quatro tipos de liturgia: a da Cúria Romana, que residia no Palácio do Latrão, a da vizinha Basílica de São João, a da Basílica de São Pedro e a chamada liturgia da Urbe, ou seja, da cidade de Roma. Ino¬cêncio III, em seu projeto de reforma, que viu um de seus momentos de máxima expressividade no Concílio Lateranense IV, de 1215, não excluiu a liturgia. Um dos frutos mais prestigiosos da reforma da liturgia foi o breviário. Aproximando, integrando e adequando à vida da Cúria Romana, freqüentemente sujeita a transferências, textos que anteriormente eram distribuídos em livros diversos, Inocêncio III forneceu um instrumento de fácil manipulação sobretudo para aqueles que viviam viajando. Esse breviário, justamente por sua facilidade de uso, foi logo adotado também por algumas dioceses, entre as quais a de Assis. Dessa forma, Francisco e a fraternitas menorítica tiveram acesso a um livro litúrgico que cedo se revelou conforme a suas exigências de pessoas itinerantes que viviam como “estrangeiros e peregrinos”2. Assim, os Frades Menores fizeram sua a oração litúrgica e especialmente a oração da Cúria Romana, ou seja, do pontífice
2. Não simplesmente questão de oração
Adotar um livro litúrgico ou outro não era indiferente. O papa Gregório VII já o havia compreendido anteriormente, quando via com temor uma disparidade litúrgica, porque em alguns casos conduzia não apenas a uma disparidade jurisdicional, mas também doutrinal, ou seja, à heresia. Por exemplo, adotar o breviário da Cúria Romana reformado por Inocêncio III significava acolher toda uma tradição anterior; nele, a disposição das diversas festas, a escolha de determinadas leituras, a montagem de passagens bíblicas para formar antífonas, versículos e responsórios, a presença de inúmeras leituras tanto patrísticas quanto dos antigos martirológios eram fundamentalmente o resultado da reflexão eclesial e da experiência sobretudo monástica de todo o milênio anterior. Portanto, ao fazer seu o breviário, Francisco e a fraternitas menorítica se inseriram numa história que os havia precedido e que fora transmitida ao longo dos séculos. Isso não significa que eles se sentiram ou agiram como se fossem prisioneiros daquela tradição: de fato, como anota uma fonte, Francisco não deixou de afirmar sua peculiaridade, repelindo alguns modelos a ele precedentes.
Seja como for, acolhendo a oração do breviário, eles se inseriram dentro da tradição espiritual e teológica amadurecida ao longo dos séculos na Igreja, como se pode constatar na leitura dos escritos de Francisco, nos quais as reminiscências litúrgicas são incontáveis. Essas reminiscências, que tecnicamente são definidas casos de “intertextualidade e interdiscursividade” - ou seja, citações propriamente ditas ou simples remissões conceituais -, muitas vezes são uma transmissão de textos patrísticos interiorizados pelo santo. Se isso parece surpreendente, sobretudo com relação a certa historiografia que apresentou Francisco de Assis como o Santo unicamente do Evangelho - quase uma espécie de precursor da reforma protestante -, ainda mais rico de conseqüências é o fato de que muitas vezes a própria Bíblia, e portanto o Evangelho, está presente em seus escritos mediada pela liturgia. Isso, naturalmente, leva a rever certas descrições da experiência espiritual de Francisco que o apresentam como alguém que teve uma relação imediata, sem mediações, com a Escritura. Em vez disso, o que fica claro a um estudo mais aprofundado é que ele conheceu a Escritura mediante a liturgia, ou seja, graças à mediação da Igreja. E a liturgia é ela mesma uma explicação da Escritura, ou seja, uma exegese: de fato, mesmo simplesmente a colocação de uma determinada leitura numa festa em vez de outra já diz muito sobre a chave de leitura e, portanto, sobre a compreensão daquele determinado trecho. Assim, a leitura do capítulo 11 de Isaías, no qual se fala do rebento que desponta do tronco de Jessé no Comum da Virgem Maria já é em si mesma uma perspectiva mariana dada àquele determinado trecho, notavelmente aumentada, se, ainda por cima, no lugar de virga, ou seja, rebento - como deveria ser - está virgo, ou seja, Virgem, como se mostra no breviário que pertenceu a São Francisco de Assis: “Despontará a Virgem do tronco de Jessé, um rebento germinará de suas raízes, sobre ele pousará o espírito do Senhor”.
3. O testemunho do Breviarium Sancti Francisci
A importância da liturgia na fraternitas menorítica e na vida de Francisco de Assis é testemunhada não apenas pela Regra dos Frades Menores confirmada pelo papa Honório III em 1223, mas sobretudo por um códice conservado entre as relíquias do proto-mosteiro de Santa Clara, na homônima Basílica em Assis. Como testemunha uma escrita de próprio pu¬nho do frei Leão, ou seja, de um dos companheiros, além de testemunha, do Santo, esse códice foi usado pelo próprio Francesco: “O bem-aventurado Francisco recomendou esse breviário a seus companheiros, frei Ângelo e frei Leão, uma vez que, quando tinha saúde, quis sempre recitar o ofício, como está contido na Regra; e no tempo de sua doença, não podendo recitá-lo, queria escutá-lo; e isso continuou a fazer enquanto viveu”4.
O códice, denominado Breviarium sancti Francisci, consiste fundamentalmente num breviário, no saltério e no evangeliário; a primeira parte é a mais consistente e é constituída pelo breviário da Cúria Romana reformado por Inocêncio III. A antiguidade desse texto, que o torna uma testemunha privilegiada dessa reforma e portanto da história dos livros litúrgicos em geral, é confirmada pela presença, sobretudo nas solenidades marianas ou de santos ligados ao ministério pontifício, como Pedro, Paulo e Gregório Magno, de leituras extraídas dos sermões do próprio Ino¬cêncio III; essas leituras, depois da sua morte, em 1216, serão tornadas facultativas pelo sucessor, papa Honório III, e imediatamente desaparecerão do breviário5. De fato, o Breviário de São Francisco é o único breviário propriamente dito que contém essas leituras por inteiro. Esse códice foi usado por Francisco e certamente cooperou para formar nele uma, ainda que rudimentar, cultura teológica, que lhe permitiu expressar sua espiritualidade e seu pensamento em alguns escritos, três dos quais estão ainda hoje ao nosso alcance em seu formato manuscrito original
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Considerando esse papel desenvolvido pela liturgia na formação cultural e espiritual de Francisco, essa deve ser levada em conta devidamente quando se procura compreender a mensagem do santo de Assis. Portanto, sobretudo o conteúdo desse códice deve ser levado em conta todas as vezes em que se queira aprofundar uma temática particular de seu pensamento; assim, o papel da Virgem Maria em seu pensamento se tornará mais inteligível na medida em que se lerem seus escritos levando em conta o Ofício da Bem-aventurada Virgem e as quatro festas marianas contidas no citado códice, ou seja, a Apresentação de Jesus no Templo, em 2 de fevereiro; a Anunciação, em 25 de março; a Assunção, com sua oitava, de 15 a 22 de agosto; e a Natividade de Maria, em 8 de setembro. Ainda que as duas primeiras festas, ou seja, a Apresentação no Templo e a Anunciação, celebrem dois mistérios da vida de Jesus Cristo, já há séculos haviam assumido uma forte conotação mariana, tanto que a primeira é denominada pelo citado Breviarium como festa da Purificação da Virgem Maria7.
A importância do Breviarium sancti Francisci foi reconhecida e testemunhada pelo próprio frei Leão, que o deu à abadessa Benedita do mosteiro de Santa Clara de Assis, para que o conservasse como um testemunho privilegiado da santidade de Francisco. Todavia, antes de entregá-lo, ele assinalou no calendário diversos dias aniversários de defuntos, entre os quais os de Inocêncio III e o de Gregório IX. Depois ainda de alguns anos, durante os quais foi usado como livro litúrgico, o breviário do Santo foi definitivamente posto entre as relíquias do citado mosteiro, onde ainda hoje pode ser admirado. Justamente em razão dessa importância, no século XVII sua capa foi decorada com duas ornamentações de prata que representavam São Francisco e Santa Clara
4. Francisco e a Igreja
Um dos temas mais debatidos na historiografia franciscana é a relação de Francisco com a Igreja. Houve quem falasse de Francisco como uma espécie de revolucionário, e quem, por sua vez, não podendo contradizer as fontes, procurasse a razão de sua obediência à hierarquia em sua escolha de viver como frade menor; seja num sentido, seja no outro, sua postura é sempre vista de uma maneira que podemos definir afastada, extrínseca. A consideração da importância da liturgia na vida de Francisco pode ajudar a compreender melhor sua relação com a Igreja: ele viveu a inserção, certamente não de maneira passiva, numa história que o precedia e que se havia expresso também mediante determinadas fórmulas litúrgicas. A oração e a meditação de textos anteriores a ele, expressão da vida e da santidade da Igreja ao longo dos séculos, tornaram-se para Francisco o lugar de comunhão com a história da salvação. Justamente por isso, ele foi muito determinado contra aqueles que não queriam rezar o Ofício, como é testemunhado pelo que escreve em seu testamento: “E embora eu seja simples e enfermo quero contudo ter sempre junto de mim um clérigo que reze comigo o ofício segundo manda a Regra. E todos os outros irmãos estejam obrigados a obedecer de igual modo aos seus guardiães e a rezar o ofício segundo manda a Regra. E se acaso houver quem não reze o ofício segundo o preceito da Regra e introduzir um modo diferente ou não seja católico, todos os irmãos, onde quer que estiverem e acharem um deles, são obrigados sob obediência a levá-lo ao custódio mais próximo do lugar onde o tiverem encontrado. E o custódio esteja gravemente obrigado sob obediência a mantê-lo sob guarda severa como prisioneiro, dia e noite, de modo que não possa escapar de suas mãos, até que o entregue pessoalmente às mãos de seu ministro. Também o ministro esteja gravemente obrigado sob obediência a enviá-lo por tais irmãos que o guardem dia e noite como um preso, até que o apresentem ao senhor de Óstia, que é o senhor, protetor e corretor de toda a fraternidade”8. Essa lista que se conclui com a entrega ao “senhor da Óstia”, ou seja, ao chamado cardeal protetor da Ordem dos Frades Menores, foi considerada uma das “durezas” de frei Francisco que tanto contrasta com uma certa imagem conciliadora que se tem dele; e essa dureza se dá diante daqueles que não rezavam o breviário. Isso é devido ao fato de que essa determinada oração, e portanto também sua recusa, estava diretamente relacionada com a ortodoxia ou não da pessoa e da comunidade.
O axioma lex orandi, lex credendi, lex vivendi pode ser constatado como vivido por Francisco e também considerado por ele, ainda que não explicitamente, uma das referências da sua experiência cristã. A forma como Francisco rezou, e que quis que fosse também a da fraternitas menorítica, ou seja, a oração do breviário, é expressão da sua fé, a da Igreja representada pelo pontífice, que se exprimiu em sua vida concreta. Portanto, se quisermos compreender plenamente a experiência do santo de Assis e de sua pregação de paz - com o significado que assumiu ao longo da história e sobretudo graças ao pontificado de João Paulo II -, não pode ser negligenciada a sua fé expressa mediante a oração, sobretudo litúrgica, e a oração do breviário.

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