domingo, 30 de dezembro de 2012

Itinerário Franciscano

 

SF. ..A página deste número foi tirada do livro: Itinerário da Alma Franciscana, de Frei Leão Veuthey, OFMConv.. traduzido do italiano e publicado pelos franciscanos de Montariol-Braga em 1948. Tiramos uma página do fundo do baú!

Que não se estranhe o jeito “português” de escrever. Que não se critique um certo estilo antigo de falar das coisas. Há, quem sabe, aqui ou ali, uma concepção de espiritualidade meio superada. Cada um leia o texto com senso crítico. Os círculos ou grupos vocacionais franciscanos poderão, com proveito, refletir sobre este tema.

1. Itinerário de vida

Antes de empreender uma grande viagem, começa-se por organizar o itinerário: o termo que se deseja alcançar, o caminho a seguir, e os diversos meios necessários e apropriados para chegar ao fim. Ora, o homem é um viageiro sobre a terra; vai passando por um tempo muito breve, sempre a caminho da eternidade, para onde o impele uma força irresistível, uma necessidade insuperável.

O que será para mim essa eternidade, esse abismo em que tenho que cair inevitavelmente, depois da carreira veloz da vida? Como será essa eternidade: feliz ou infeliz? E se eu posso escolher a felicidade ou a infelicidade sem fim: não será de importância suprema estabelecer bem o itinerário que conduz à felicidade, evitando assim a infelicidade eterna?

A vida presente termina com a morte, e com a morte começa a eternidade: como será para mim essa eternidade? Eis a questão que se põe a todo homem, ainda que não queira! Todos desejam naturalmente a felicidade eterna: mas, qual será caminho? Muitos o ignoram. Todavia, o cristão o conhece, conhece o caminho da felicidade. Foi Jesus quem disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Só Jesus pode indicar o caminho a seguir, porque só é Ele é o caminho; só Jesus pode conduzir ao termo, porque só Ele é a verdade; só Jesus pode levar-nos a esse termo, porque é sobrenatural, porque só Ele pode comunicar-nos a sua vida sobrenatural, que nos fará participante da vida divina e da divina eternidade à qual somos chamados.

2. Diversas espiritualidades

Jesus indicou a todos os seus discípulos o itinerário da felicidade: Jesus é, pois, o caminho a seguir. Entretanto, são diversos os modos de seguir a Jesus: alguns, abandonando tudo por seu amor, consagram-se ao seu serviço, mediante os três votos de pobreza, obediência e castidade; outros, porém, o seguem no mundo, sem abandonarem os próprios bens, sem se ligarem com voto de obediência a um superior, vivendo no matrimônio. O itinerário é diferente, no entanto, uns e outros, com maior ou menor facilidade, com maior ou menor segurança, poderão alcançar o termo.

Esta diferença de itinerário é, sobretudo, material e exterior, e na escolha de um itinerário pode haver uma diferença interior e espiritual que se chama precisamente espiritualidade.

Assim, há na Igreja de Cristo: uma espiritualidade beneditina, uma espiritualidade dominicana, uma espiritualidade inaciana, uma espiritualidade franciscana, etc.; cada qual é boa e santa e logra as suas vantagens e têm produzido os seus santos.

Uma espiritualidade não se distingue doutra em razão da doutrina fundamental, que é a mesma em todas: a doutrina de Cristo, a doutrina do Evangelho; no entanto existe um modo e uma maneira de seguir a Cristo; na identidade da doutrina pode haver uma variedade de interpretação, uma variedade de espírito; é isso que constitui a espiritualidade particular.

A espiritualidade franciscana terá, pois, muitos pontos comuns com as outras espiritualidades cristãs, pelo fato de todas professarem a mesma doutrina, mas distinguir-se-á das outras em razão de seu espírito, e da importância que atribui este ou àquele ponto da mesma doutrina. Enquanto que as outras espiritualidades atribuem particular importância ao esforço pessoal para chegar à união com Deus, a espiritualidade franciscana busca, acima de tudo, aquela união com Deus no amor, e desta união tira toda sua atividade; enquanto que aquelas tendem primeiramente ao desenvolvimento das atividades e das possibilidades naturais, para chegar depois à perfeição sobrenatural, esta renúncia à natureza, logo de início, e entrega-se toda, inteiramente, à ação sobrenatural de Deus, sob a qual somente pretende agir e da qual somente espera toda perfeição natural e sobrenatural. E, assim, enquanto que as outras espiritualidades são principalmente ativas, a espiritualidade franciscana é caracteristicamente passiva, unicamente sobrenatural, fora de todo dualismo de vida natural e vida sobrenatural; a espiritualidade franciscana é mística, inteiramente e por princípio, quer dizer, sobrenatural, porquanto inteiramente por princípio pretende desenvolver-se pela ação sobrenatural ou mística do amor divino.

Por isso, enquanto as outras espiritualidades assentam na base do espírito espiritual a obediência, o silêncio, a especulação e o esforço pessoal, a espiritualidade franciscana fundamenta-se na pobreza, considerada em toda a sua profundidade mística de renúncia, desapego de tudo, desapego pessoal, a fim de que a alma, despojada completamente e aniquilada em Deus, permita que Deus venha viver e operar em si. Desta pobreza, procederá a obediência, pois a alma vazia de si mesma, já não tem vontade própria. A especulação , sendo atividade demasiado pessoal e humana, cederá ao amor que é dom de si mesmo, é passividade mística sob o império do Amado.

Ora, o Amado é Jesus que, pela espiritualidade franciscana concreta, constitui toda a perfeição: portanto, nada de virtudes abstratas a conquistar, uma após outra, com a meditação e a vontade própria: mas conquistar Jesus, concretização de toda virtude, amando-o, contemplando-o e imitando-o! Quer dizer: será perfeito quem se transformar no objeto amado, como exige a lei do amor. “O amor transforma o amante no Amnado” (São Boaventura, III S., 26; III, 270). “Pela força do amor, serás transformado naquilo que amares”, diz nosso Doutor Seráfico (Sermo XI, Vig. Nat. IX, 98).

3. Espiritualidade franciscana

A espiritualidade franciscana – mística, concreta e afetiva – não conhece outra regra de perfeição, que não seja observar Jesus, amá-lo de afeto e de fato, e assim transformar-se nele até poder dizer com São Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas Jesus que vive em mim” (Gálatas 2,10). Para São Francisco, todas as coisas eram intuitivas, obra espontânea do amor; contudo, ajudará o crescimento de nossa vida espiritual investigar a profundidade de doutrina que se esconde sob esta simples intuição de amor: toda a doutrina do aniquilamento próprio e transformação em Cristo, visa a nossa incorporação no seu Corpo Místico.

O aniquilamento é obra da pobreza, levada às suas últimas consequências de renúncia e desapego absoluto, conforme o ideal de São Francisco; a transformação e a incorporação é obra do amor de Jesus, e Jesus crucificado, fundamento e centro de espiritualidade franciscana, fonte da sua pobreza e do seu amor; ou mais simplesmente: fonte do amor à pobreza, que é o amor a Jesus crucificado. São Francisco encontrou o seu caminho, quando o Crucificado lhe apareceu na solidão: “Ante aquela visão, a sua alma ficou inundada de amor; a lembrança da paixão de Cristo imprimiu-se-lhe no coração de tal modo que nunca mais pode pensar em Cristo e na sua cruz, sem se desfazer em lágrimas e suspiros” ).
Foi a cruz que inspirou a São Francisco o amor da pobreza, da humildade, do aniquilamento; tendo estabelecido o vácuo dentro de sua alma, o mesmo amor de Cristo o transformara, comunicando-lhe as virtudes e a própria vida de Cristo, vida humano-divina, que é toda a perfeição sobrenatural a que devemos aspirar.

Deste amor sobrenatural por Jesus procedem todas as outras características da espiritualidade franciscana: o amor de Maria, inseparável do amor de Jesus; mas um amor filial, íntimo, profundo, porquanto na identificação com Jesus deve-se amar Maria com o mesmo amor de Jesus, para quem Maria não é simples mãe adotiva, mas vida de sua vida e sangue de seu sangue.
O amor às criaturas é também consequência do amor a Cristo, o Verbo encarnado para quem e em quem tudo foi criado e cuja imagem anda impressa em todas as coisas; o amor de São Francisco pelos homens é o seu amor por Cristo em cujo Corpo místico todos formam ou devem formar um só Cristo.
Todavia, o amor de São Francisco não se detém em Cristo; tornado um com ele, São Francisco participa de seu amor inefável pelo Pai, ao qual devem regressar todas as criaturas, pelo Verbo encarnado, em um dar-se contínuo de amor no Espírito Santo. São Francisco sentiu a primeira centelha de amor, quando foi repelido por seu pai; então pôde dizer, com o enlevo que depois havia de ir crescendo por toda a vida e que seria o seu respirar profundo: “Pai nosso que estais nos céus…!”

Se Jesus é o fundamento e centro de toda a espiritualidade franciscana, o termo derradeiro do seu itinerário é o Pai, no oceano infinito do amor da Santíssima Trindade que a franciscana Santa Verônica de Giuliani cantou com profunda elevação: “Parece que a alma se encontra como que nadando em Deus! Lida, lida sem parar e sempre se encontra em Deus; lida para encontrar Deus, conquanto sinta que está em Deus, busca a Deus no próprio Deus, e buscando-o em si o encontra” (Diário, 21, VIII, 1705: VI, 762).“Tudo isto se passa no íntimo de minha alma, a qual se encontrava naquele mar imenso e infinito de Deus, que não é compreendido e de quem não se pode compreender a grandeza e imensidade. Deus possui em si a alma que se perde nele, e nele está nadando como o peixe n’água e não encontra vida senão em Deus, para Deus, e com Deus. O coração amoroso comunica então à alma o seu próprio amor, desprende-a e tudo, e nela quer operar sozinho” (Diário 5, V, 1715; VI, 805).

Qual é o homem que não sente vibrar o coração, perante a simples narrativa destas experiências de amor a que ele próprio é chamado? O homem foi criado para o amor, e o amor é a razão do seu ser e de toda a sua atividade. O Itinerário franciscano conduz a esse amor, pelo caminho de renúncia da santa pobreza, a qual despoja de tudo para dar Tudo, isto é, para dar o Amor: Meu Deus e meu Tudo!

Fonte: Franciscanos.org

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