sexta-feira, 26 de março de 2010

Novena da Misericórdia: importante expressão da piedade cristã contemporânea

A Nove17 Uma preparação espiritual para a Festa da Misericórdia

Um dos elementos mais presentes na religiosidade ou devoção popular são as novenas preparatórias para as festas dos padroeiros locais. Novena de São Francisco, Novena de Santa Terezinha etc. – são expressões de fé e piedade por vezes, talvez, improvisadas ou confusas, mas não desprovidas de significado e relevância para a comunidade local e para o devoto em particular.
A piedade popular se manifesta de variadas formas nas diversas partes do mundo (p. ex., a novena do rei S. Luís IX na França), e por isso desde 1963 a Igreja tem procurado valorizá-la e orientá-la com mais clareza (cf. Concílio Vaticano II, SC 9 e 13; Paulo VI, Evangelii nuntiandi, 48; Catecismo da Igreja Católica, 1178; 1674ss). Na América Latina, recentemente o Documento de Aparecida (2007) sublinhou que tais práticas – “festas patronais”, “novenas” etc. – refletem “uma sede de Deus” e por isso constituem um “precioso tesouro” (nn. 258-259) a ser salvaguardado e purificado. Dentre as diversas novenas existentes, a novena de Pentecostes, da Imaculada Conceição e do Natal do Senhor gozam de oficial beneplácito eclesial (cf. Manual de Indulgências, 1986, Concessões, n. 34), o que demonstra que formas de piedade particular podem adquirir paulatinamente um caráter universal, sinal do Espírito que move a Igreja.

A Igreja tem procurado contemplar a piedade popular de uma maneira justa. Em 2001 o Vaticano, através da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, publicou o “Diretório sobre piedade popular e liturgia. Princípios e orientações”, importantíssimo documento sobre o assunto, no qual a Igreja examina mais detidamente a relação entre a Liturgia oficial e a religiosidade popular. Recorda (nn. 29s) que a piedade popular floresceu na Idade Média (entre os séculos VII e XV), já que os fiéis não conseguiam vivenciar de modo frutuoso as celebrações litúrgicas. Algumas de suas expressões surgidas naquela época chegaram até os nossos dias, dentre as quais as novenas (n. 32), o que é uma indicação da sua validade. Apesar de desvios que possam ocorrer aqui e acolá, liturgia e piedade popular “são duas expressões legítimas do culto cristão” que devem estar “em mútuo e fecundo contato” (n. 58), lembrados de que no âmbito da fé hão de se conjugar o privado com o comunitário, o local com o universal, o espontâneo com o oficial. Mesmo com a reforma litúrgica promovida pelo Concílio de Trento (séc. XVI), será justamente após ele que as formas devocionais hão de se desenvolver de um modo mais forte, demonstrando que não se pode aprisionar o Espírito (cf. Grolla, Valentino, L’agire della Chiesa. Teologia pastorale, Ed. Messaggero, Padova, 20033, p. 349).
Aquele que é “três vezes Santo” quis ocultar-se “por nove meses no Coração da Virgem” (Santa Faustina, Diário, n. 161), tempo da gestação humana, necessário para que venha à luz um novo ser. O número “nove” não é muito explorado pela Sagrada Escritura, mas pode ser relacionado com uma nova vida que está chegando; haja visto que o número dez é tido como perfeito (p. ex., Êx 34,28; Ap 17,12), e portanto o nove aponta para uma plenitude que está próxima. – Um outro modo de considerar a questão destaca que “a novena não é outra coisa que um tríduo triplicado, isto é potenciado, levado por conseguinte a uma eficácia muito maior, e reservado portanto aos casos mais solenes” (Enciclopedia cattolica, Città del Vaticano, 1954, “Triduo”, p. 518). O número três é particularmente simbólico; Deus se revelou um só em 3 Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo; quando se quer reforçar ou dar ênfase a uma expressão, repete-se a mesma por 3 vezes. Assim, afirmar que Deus é Santo, diz-se três vezes: “Deus é Santo, Santo, Santo” (Is 6,3; Ap 4,8). Deus abençoa três vezes (Nm 6,24-26). Três são os mensageiros que anunciam o nascimento de Isaac (Gn 18,1ss). É ele próprio, então, o número da plenitude (Ap 21,13) e da santidade (Ap 4,8).
Na Sagrada Escritura se costuma sublinhar o período de três dias como tempo de preparação para algum importante acontecimento ou intervenção divina (cf. Tb 3,10; Jt 12,6; Est 4,16; 2Mc 13,12; Jo 2,1.19-21; At 9,9; etc.). S. Agostinho registra que em Roma havia muitos cristãos que praticavam a devoção do “tríduo contínuo” (continuum tríduum) de oração e sacrifício (De mor. eccl. cath. I,33). Por sua vez, a celebração cristã da novena é prefigurada pelos nove dias em que os Apóstolos (Pedro, Tiago e João mais outros nove!) e os primeiros discípulos/as deviam aguardar, em Jerusalém, pela mais plena manifestação do Espírito Santo, seguindo a vontade expressa de Jesus após a sua Ressurreição (cf. At 1,3s.; 2,1); S. Lucas registra que nestes dias estavam em profunda comunhão com Deus e com o próximo: “Todos estes, unânimes, perseveravam na oração” (At 1,14). Interessante notar ainda que estes nove dias preparavam a Igreja para a sua manifestação ao mundo, para o seu “parto”, após três anos de intensa preparação durante a vida pública de Jesus. Através das novenas procuramos corresponder ao apelo e testemunho do Senhor, às portas da sua paixão e morte: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação... E, afastando-se de novo, orava dizendo a mesma coisa” (Mc 14,38s), lembrados ainda do seu ensinamento sobre a insistência e a perseverança na oração, suplicando aquilo que é necessário ou conveniente para a nossa salvação e a alheia (cf. Lc 11,5-13; 18,1-8).
Uma das maiores místicas da espiritualidade cristã soube integrar muito bem liturgia e piedade. Santa Faustina Kowalska alimentava a sua fé, esperança e caridade, sobretudo, a partir dos sacramentos (Eucaristia e Confissão; ano litúrgico) e da oração comunitária e pessoal (meditação, contemplação), e ao redor deste eixo inseria as práticas devocionais (oração vocal). Em seu Diário encontramos o testemunho de que ela várias vezes realizou novenas (ao Sagrado Coração de Jesus, ao Espírito Santo, a N. Senhora, aos santos) através da recepção da Comunhão, Adoração ao Ssmo., orações específicas (Via-Sacra, oração à misericórdia divina [n. 187], mil Ave-Marias, ladainhas etc.) e/ou mortificações, tendo em vista objetivos diversos: por si mesma, pela obra da divina misericórdia, pelo Papa, pelo confessor, pelo clero, pelo mundo e pela pátria (cf. nn. 150; 269; 325; 529; 647; 665; 922; 940; 1041s; 1090; 1206; 1251; 1257; 1290; 1413; 1752). Algumas vezes foi o próprio Jesus quem diretamente lhas recomendou: “Vai falar com a Superiora e pede que te permita fazer diariamente uma hora de adoração, durante nove dias... Reza de coração em união com Maria e, também, procura durante esse tempo fazer a Via-sacra” (n. 32s); “Faz uma novena pela Pátria” (n. 59s); “Faz uma novena na intenção do Santo Padre...” (n. 341).
O Diário de Santa Faustina nos lega, outrossim, uma nova e importante prática de piedade, a novena em preparação à Festa da Divina Misericórdia, que por isso mesmo se encontra em profunda relação com a liturgia da Igreja. Acontece durante o Tríduo Pascal e a Oitava da Páscoa, favorecendo ao fiel uma mais profunda imersão no mistério da misericórdia divina, que plenamente se manifesta na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Em 3 momentos o Diário trata desta novena de um modo específico: - Prelúdio, em 1936: “O Senhor me disse para rezar o Terço da Misericórdia por nove dias antes da Festa da Misericórdia. Devo começar na Sexta-feira santa. Através desta novena concederei às almas toda espécie de graças” (n. 796);
- Revelação completa, em 1937: “Jesus me manda fazer uma novena antes da Festa da Misericórdia, e hoje devo começá-la, pedindo a conversão do mundo inteiro e o conhecimento da misericórdia de Deus” (n. 1059);
- “Novena à Misericórdia Divina que Jesus me mandou escrever e rezar antes da Festa da Misericórdia. Começa na sexta-feira santa. Desejo que, durante estes nove dias, conduzas as almas à fonte da Minha misericórdia, a fim de que recebam força, alívio e todas as graças de que necessitam nas dificuldades da vida e, especialmente na hora da morte. Cada dia conduzirás ao Meu Coração um grupo diferente de almas e as mergulharás nesse oceano da Minha misericórdia. Eu conduzirei todas essas almas à Casa de Meu Pai. Procederás assim nesta vida e na futura. Por Minha parte, nada negarei àquelas almas que tu conduzirás à fonte da Minha misericórdia. Cada dia pedirás a Meu Pai, pela Minha amarga Paixão, graças para essas almas” (n. 1209).
Já naquele ano de 1937 esta novena era aprovada e publicada em Cracóvia (cf. nn. 1255; 1379). As suas nove intenções se encontram sob os números 1209-1229 do Diário, e abarcam os mais variegados grupos de pessoas. Reza-se por todo o gênero humano marcado pelo pecado (todos somos pecadores!), mas de modo especial pelos pecadores (agonizantes, impenitentes, endurecidos e empedernidos, segundo expressões utilizadas no Diário); intercede-se pelos diversos membros da Igreja, tanto pelos sacerdotes e religiosos, como pelos fiéis em geral; pede-se também pelos cristãos separados (“heréticos e cismáticos”), pelos não-cristãos e por aqueles que ainda não conhecem a Deus (ateus, agnósticos e poderíamos incluir os “católicos de IBGE”!); reza-se pelas almas mansas e humildes (mais semelhantes ao Coração de Jesus) e pelos que glorificam de maneira especial a Divina misericórdia; por fim são apresentadas ao Senhor as alma do purgatório e aqueles que vivem na tibieza (baixo fervor espiritual e empenho cristão). Vê-se que é uma maravilhosa prática de intercessão comunitária, uma espécie de prolongamento da Oração universal com suas 10 intenções, antiqüíssima oração presente na Celebração da Paixão do Senhor na Sexta-feira santa.
No Diário igualmente se exorta a rezar durante nove dias à divina misericórdia em outras circunstâncias. Por exemplo, em 1935, Santa Faustina resolveu “fazer logo uma novena à Misericórdia” por uma pessoa em necessidade (n. 364). Naquele mesmo ano o próprio Jesus lhe pediu rezar o terço da misericórdia por nove dias, a fim de que se aplacasse a justiça divina antes os pecados do mundo (n. 476). No ano seguinte Jesus pede que as irmãs e as educandas fizessem o mesmo pela Polônia (n. 714). Noutra ocasião S. Faustina reza uma novena à misericórdia divina no dia 28 de dezembro (n. 851). Em 1938 a religiosa polonesa realizou esta novena por uma coirmã, a fim de que se cumprisse nela os planos divinos, pois “na oração não devemos forçar a Deus a nos dar o que nós queremos, mas antes submeter-nos à Sua santa vontade” (n. 1525). Os Padres José Andrasz e Miguel Sopocko, que acompanharam S. Faustina, explicam que “a novena da Misericórdia pode ser feita em qualquer tempo, mas, de harmonia com os desejos de Nosso Senhor, a época própria é a preparação para a Festa da Misericórdia” (A misericórdia de Deus, a única esperança da humanidade, Tipografia Porto Médico, Porto, 19562, p. 64). No que diz respeito às festas relacionadas com a devoção à Divina Misericórdia, esta é a principal, e por isso há de ser preparada de um modo especial (cf. Laria, Raffaele, Santa Faustina e a Divina Misericórdia, Paulus, Apelação, 2004, p. 121).
FONTE: http://www.misericordia.org.br

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