Uma página que é dupla. Neste mês de dezembro pensamos no Natal de Francisco em Greccio. Neste mês de alegrias serenas pensamos no jeito de Francisco viver a alegria.
a) Natal de Greccio
Por ocasião de visita a Roma, Francisco obteve do Papa a licença para celebrar o Natal de uma maneira toda particular e conforme suas ideias pessoais. Escolheu Greccio porque o proprietário do lugar, Giovanni di Velita, “que dava menos importância à nobreza do sangue do que a da alma” havia lhe dado uma montanha coberta de bosque que dominava os rochedos do vilarejo e o vale de Rieti até os montes azulados, que se estendiam diante de seu horizonte.
Na encosta da muralha de pedra, Francisco havia construído um pequeno eremitério aproveitando, como de costume, grutas ou reentrâncias que a natureza oferecia. A gruta foi transformada em capela. A pedido de Francisco colocou-se ali uma manjedoura generosamente guarnecida de palhas. Havia também um boi e um burro, conforme mandava a tradição.
No coração da noite, foram acesas tochas e a população dos arredores chegava de todos os lados, por entre as árvores, carregando archotes, de tal maneira que as trilhas da montanha palpitavam como riozinhos de luz. Um sacerdote veio para dizer a missa sobre a manjedoura, transformada em presépio. Revestido de dalmática, Francisco leu o Evangelho da Natividade. A multidão maravilhada pela redescoberta do grande mistério acompanhava com atenção os mínimos detalhes da cerimônia e muitos diziam terem visto Francisco tendo no braços o Menino banhado de raios luminosíssimos. A fé da Idade Média, muito mais próxima da infância do que a nossa, traduzia instintivamente, através de visões, as verdades a serem cridas e que assim melhor falavam ao seu coração.
Aquela noite foi de uma extraordinária doçura que nunca foi esquecida. Pelos bosques os frades cantavam e as luzes brilhavam docemente em quase todos os lugares querendo se juntar a essa explosão de alegria inesperada, respondendo, de alguma forma, à claridade obscura do céu. Era já a nossa missa do galo, da meia noite, a primeira cheia dessa poesia que somente Francisco de Assis podia ter inventado. Naquele ano, as lutas incertas terminaram para Francisco no êxtase de alegria.
“Frère François”, Julien Green, Ed. du Seuil, 1991, 304-305
b) A alegria
O prazer do mundo se manifesta ainda mais claramente no comportamento alegre. Nisso, ainda, há aproximação entre religiosos e leigos, enquanto que o modelo monástico fazia do monge um especialista em lágrimas ( is qui luget = ele que chora). Ao contrário, abundam textos que mostram Francisco hilaris, hilari vultu ( alegre, com o rosto alegre).
Em sua narrativa sobre os primeiros Menores na Inglaterra, Thomas d’Eccleston multiplica o testemunho sobre a alacridade dos frades que às vezes parece até forçada ou excessiva.
Quando os frades se instalam na cidade inglesa de Cantuária, numa casa em que à noite, de regresso, acendiam o fogo, sentavam-se em torno dele, cozinhavam uma beberagem (potus) numa panela e a bebiam em círculo. Às vezes, a bebida era tão grossa que nela precisavam jogar água e depois a bebiam alegremente ( et sic cum gaudio biberent). Da mesma forma, em Sarum, os frades bebiam diante do fogo na cozinha uma imunda borra (faeces) com tanto prazer e alegria (cum tanta iucunditate et laetitia) que se divertiam em roubar uns dos outros a bebida amigavelmente.
Em Oxford, os jovens frades adquirem de tal modo o hábito de serem entre si iucundi et laeti(jucundos e alegres) que, olhando-se mutuamente, têm dificuldade para conter o riso ( ut vix in aspecto mutuo se temperarent a risu). Essas crises de riso bobo acabam por provocar chibatadas, que entretanto não dão resultado. Só um milagre para acabar com epidemia do riso.
Quanto a Peter Tewksbury, disse ele a um frade: “Três coisas são necessárias para a salvação temporal, o alimento, o sono e o jogo. Assim, receitou a um frade melancólico que bebesse um cálice cheio de ótimo vinho como penitência, e como ele o bebesse, ainda que o tivesse feito contrariadíssimo, disse-lhe: Irmão caríssimo, se fizeres frequentemente uma tal penitência, terás sempre melhor consciência”.
A palavra de ordem de Francisco é paupertas cum laetitia (Adm XXVII, 3): pobreza com alegria.
De fato, a fonte dessa alegria é também de ordem divina. É uma existência transcendente, um sinal da graça, efeito do Espírito Santo, nasce da descoberta do Evangelho e da pobreza. O demônio nada pode contra ela (2Cel 88).
Afinal, ela se combina com o ascetismo e a experiência da dor, para se consumir no amor. Boaventura o diz em De triplici via (“Sobre o caminho tríplice”) : “Começa esse caminho com um aguilhão da consciência e se acaba como um sentimento de alegria espiritual, e exercita na dor, mas se consuma no amor”.
“São Francisco de Assis”, Jacques Le Goff, Ed. Record, 2001, p. 228-230
Fonte: http://ofsabaete.blogspot.com/2011/12/francisco-greccio-e-legria.html?spref=fb
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