Por Ian Farias.
Após o ciclo de quatro semanas propostas pela Igreja no tempo do Advento, celebramos ainda hoje a Solenidade que faz maravilhar nossos corações: o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Deus entra no espaço e no tempo dos homens. Fá-lo para realizar plenamente a salvação daqueles que estavam carregados com o julgo do pecado.
“Apparuit enim gratia Dei salutaris omnibus hominibus – Manifestou-se a graça salvadora de Deus a todos os homens” (Tt 2, 11). Esta é a festa da gloriosa manifestação da graça santificante. Somos envoltos na luz da misericórdia e do amor de Deus, um Deus que faz-se um de nós assumindo o rebaixamento da nossa condição humana. Esse amor não aparece, mas manifesta-se. Manifesta-se, pois já existia, e porque já existia manifestou-se. Mas que coisa é para nós hoje esta manifestação? O que ela representa aos nossos dias atribulados pela valorização de coisas efêmeras, de guerras, de ódios, de divisões? Vemos com grande tristeza a perda dos valores natalinos.
Enfeitamos as casas, os comércios, os, porém, corações continuam despreparados para acolher o Menino Deus que vem para libertar-nos do pecado. Os símbolos natalinos perdem seu valor e em nada traduzem o espírito natalino quando são privados de exalar o perfume de Cristo. A Igreja não cessa de convidar os católicos para que, profundamente tomados pela força revigoradora do Cristo, possam manifestar ao mundo que o verdadeiro espírito do Natal não há de consistir apenas nos presentes, pois hoje nos é dado o maior presente; também não há de consistir apenas na árvore de Natal, pois os céus se abrem hoje para manifestar que a Árvore da Vida implanta-se no mundo para nos guiar até o céu.
A manifestação daquele recém-nascido envolto em panos é também o grito de tantas crianças colocadas à margem da sociedade e que nesta noite, tomadas pela escuridão e pelo frio que as cercam não estão incluídas em seios familiares. A elas também dirijo o meu pensamento e peço que não se sintam abandonadas, mas que sintam a presença do Menino Jesus que as ama e com elas permanece sempre.
O Senhor faz-se pequeno para que a o gênero humano pudesse ser engrandecido, e o homem, tomado em sua totalidade, visse a manifestação da glória de Deus, mas não somente a visse como também a experimentasse, tocasse, por assim dizer, pudesse fazer parte dela. Só desta forma os homens poderiam sentir-se abraçados pelo grande amor de Deus, por Aquele que, a princípio, por ser grande e estar infinitamente acima de nós parecia-nos distante e inalcançável.
Na manifestação humilde do Filho de Deus o mundo encontra uma resposta a todas as suas angústias, a todos as suas interrogações. Só Deus pode responder verdadeiramente aos anseios do homem e só d’Ele provém a felicidade eterna e verdadeira, que não se restringe a um instante mas é algo novo, diferente. A alegria que provém de Deus não muda somente o estado de espírito do ser humano; ela vai além: muda o modo de viver, muda o coração e também os objetivos que deseja alcançar. Esta, e só esta, é a felicidade divina.
Na sua maravilhosa obra Confissões, Santo Agostinho irá manifestar um triângulo de relacionamentos em um parágrafo que considero um dos mais belos. Diz ele: “Ó eterna verdade e verdadeira caridade e cara eternidade! Tu és o meu Deus, por ti suspiro dia e noite. Desde que te conheci, tu me elevaste para ver que quem eu via, era, e eu, que via, ainda não era. E reverberaste sobre a mesquinhez de minha pessoa, irradiando sobre mim com toda a força. E eu tremia de amor e de horror. Vi-me longe de ti, no país da dessemelhança, como que ouvindo tua voz lá do alto: ‘Eu sou o alimento dos grandes. Cresce e me comerás. Não me mudarás em ti como o alimento de teu corpo, mas tu te mudarás em mim’”.
São estas belíssimas palavras que nos levam a contemplar novamente esta novidade que vem do alto. Sim, Deus é uma verdade eterna, imutável. Em um mundo que necessita exercitar seu empirismo para acreditar, a Igreja nos exorta novamente a abandonarmos esta mentalidade. Busquemos Aquele pelo qual acreditamos não por vermos e necessitarmos tocar, mas acreditamos pelo Amor, um amor incondicional que instiga-nos a caminharmos em direção do próximo, do que necessita nosso amparo e nosso amor, dos que sofrem por não amarem. A estes o Senhor faz um convite incansável: Não temam em abrir-se para o amor! Não temam em abrir-se a Mim!
Se eterna é a verdade, a caridade há de ser, então, verdadeira. Só a verdade pode levar o homem a sair de si mesmo e com Cristo, humilhar-se, e em Cristo, ser unido a Ele sem jamais deixar-se atribular por qualquer pressão do mundo. Renuncieis a esta vida e tereis a vida eterna. Renunciai a vida eterna e nem mesmo esta vida tereis, pois não existe maior desgraça para o homem do que afastar-se de seu Criador e colocar-se na condição de um ser autossuficiente, senhor de si e de seus desejos, podemos confirmá-lo nos vários sistemas políticos de autoritarismo.
A união com Cristo, como lembrará o Santo Bispo ao final de sua colocação, não é algo que assemelhá-Lo-á a mim, mas eu assemelhar-me-ei a Ele. A iniciativa foi dada por Cristo: Ele veio ao nosso encontro; tomemos agora a iniciativa de irmos ao encontro d’Ele, de sairmos das trevas, de amá-lo sem reservas. Indubitavelmente a falta de amor no mundo é consequência da falta de Deus, não porque Ele tenha se afastado do mundo, mas o mundo afastou-se d’Ele.
“O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1). Assim escutamos nesta noite santa por meio do Profeta Isaias. Também o mundo de hoje caminha em meio a uma forte escuridão. A cultura moderna está impregnada por “sombras da morte”. Nós parecemos não enxergar nenhum sinal que venha nos animar, parecemos atordoados pelas fadigas derivadas do peso que a sociedade impõe. Nosso Senhor, no entanto, sempre aparece como Aquele que conforta-nos e soluciona as nossas tribulações. Confiemos em Deus! Não perece quem confia em Deus, mas aquele que nele não põe sua esperança logo será abatido pelos ventos contrários. Em quem colocamos a nossa confiança? Em Deus ou no mundo? No bem ou no mal? No que fortalece ou no que atribula?
“Dominus dixit ad me filius meus es tu ego hodie genui te – O Senhor me disse: Tu és meu filho e hoje te gerei” (Sl 2, 7). Essas palavras a Igreja canta no Introito da Santa Missa da Noite Santa de Natal. Sim, “gerado, não criado; consubstancial ao Pai”, assim professamos no símbolo de fé niceno-constantinopolitano. Gerado desde toda a eternidade, Jesus, cumprindo o salvífico desígnio do Pai, restaura a condição humana decaída pelo pecado, reata os laços do homem com Deus, cortados por Adão e Eva.
“Enquanto estavam em Belém, completaram-se os dias para o parto, e Maria deu à luz o seu filho primogênito” (Lc 2, 6). Com esta frase, absolutamente sóbria, São Lucas narra o maravilhoso acontecimento que teve lugar na manjedoura. Mas que significado tem aqui o termo “primogênito”? Indicaria uma sucessão de filhos? A primogenitura, deste ponto de vista da Sagrada Escritura, na Antiga Aliança, não significa uma sucessão de filhos, mas é um título de honra. Jesus é sim o primogênito de Deus, de Maria e da História. Nele Deus concretiza o seu desígnio em relação a sua graça salvadora na humanidade. São Paulo usará desta palavra ao afirmar que Cristo é “o primogênito de toda a criatura” (Cl 1, 15). Sim, tendo cumprido a sua obra salvífica podemos afirmar que Ele torna-se também o primogênito de muitos irmãos. Maria, assim, poderíamos associar como mãe de muitos filhos. Aqui estão os outros filhos de Maria! Derivam da filiação adotiva, daquele que é Filho de Deus por excelência: Jesus Cristo.
“Ela o enfaixou e o colocou na manjedoura, pois não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 7). Não havia lugar para o Senhor e para sua mãe naquela época. Também hoje muitos corações estão fechados à receptividade do Reino de Deus que vem na pessoa desta frágil criança. No frio daquela noite de Belém nasce Aquele que iria aquecer todos os corações com a chama do seu amor misericordioso. Pedimos que os corações sejam abertos a este menino salvador. Abram-se os corações e possam acolher aquele que a dois mil anos foi rejeitado.
Que lugar Jesus ocupa em nossos corações hoje? Esta pergunta deve fazer com que possamos melhor vivenciar o verdadeiro espírito natalino. Muitos corações estão endurecidos à mensagem que esta noite tem a transmitir-nos a Igreja. Enquanto a efemeridade e o secundário forem postos como necessários os homens não encontrarão a paz tão almejada. Não pode abrir-se ao mundo e aos irmãos quem antes não estiver aberto a Deus, quem não se tornar portador de sua Palavra e fizer de sua vida um Evangelho.
“Naquela região havia pastores que passavam a noite nos campos, tomando conta do seu rebanho” (Lc 2, 8). Quem eram os pastores? Por que a eles o anúncio é dirigido primeiramente? Devemos dizer, em primeiro lugar, que os pastores eram pessoas humildes, tidas à margem da sociedade. Eram desconhecedores da Lei e, portanto, não a vivenciavam-na; andavam com suas ovelhas por diversos campos, inclusive campos pagãos; por tudo isso, eram julgados pelos fariseus e considerados impuros e indignos de participar das cerimônias de culto.
Mas se por um lado lhes pesava o fardo da exclusão, por outro, todo este sacrifício deu-lhes uma consolação maior que qualquer outra: Contemplar a face do Salvador feito homem; contemplar um Deus que é tão pequeno, tão humilde, tão frágil e quis necessitar do nosso amor. Não há na mitologia grega e nos deuses romanos nenhum Deus que tenha se feito homem; mas há para nós, homens e mulheres, testemunhas do Evangelho. O nosso Deus não constitui parte de uma literatura mítica. Ele existe! Ele vive! E hoje Ele inclina-se dos altos céus não para condenar-nos, mas para nos mostrar quão grande é o seu amor; um amor capaz de doar-se, capaz de não apenas inclinar-se para olhar-nos, mas descer para estar conosco.
Precisamente esta impressão, pela qual hoje somos tomados, acometeu os pastores que contemplaram maravilhados o menino. Deixaram tudo, ao escutar o anúncio do anjo. Certamente houve um grande temor por parte deles, afinal não lhes era comum ver aquele personagem vindo do céu. O que os pastores nos ensinam? Esta resposta nos é dada pelo Papa Bento XVI: “Deles queremos aprender a não deixar-nos esmagar por todas as coisas urgentes da vida de cada dia. Deles queremos aprender a liberdade interior de colocar em segundo plano outras ocupações – por mais importantes que sejam – a fim de nos encaminharmos para Deus, a fim de O deixarmos entrar na nossa vida e no nosso tempo. O tempo empregue para Deus e, a partir d’Ele, para o próximo nunca é tempo perdido. É o tempo em que vivemos de verdade, em que vivemos o ser próprio de pessoas humanas” (Homilia do Natal do Senhor, 2009). Ademais ensinam-nos que só o amor pode nos dar coragem para vencer o medo. Só o amor nos dá coragem para seguir a Cristo. Quem tem uma fé fraca e deixa-se abalar pelas coisas do mundo ainda não está apto para tal seguimento. Por vezes há momentos de queda, mas a força que vem de Deus dá-nos a certeza de que não estamos abandonados. Deus está conosco!
Deixemos tudo, como fizeram os pastores. Coloquemo-nos a caminho de Belém e enquanto caminhamos, rezemos: Vem, ó Senhor! Toca os corações endurecidos; renova os nossos corações; dissipa o ódio e o mal da face da terra; reafirmai vossa primazia e poder sobre todos os homens e em todos os tempos. Renovai vosso ardente desejo de sermos Evangelhos vivos para os homens de nossos dias. Revigora o ânimo dos entristecidos; conforta os tristes; curai os enfermos; acolhei os abandonados. Tornai-nos corações vigilantes na expectativa de que, habitando Cristo em nossos corações, possamos abitar igualmente no coração amoroso d’Ele. Concede paz ao mundo dilacerado pela guerra, paz verdadeira e duradoura. Paz a todos os cristãos nos mais diversos países, perseguidos por causa do vosso nome. Livrai-nos da tentação de colocar-Vos em último lugar, mas que possais crescer enquanto nós, assim como João Batista, possamos diminuir.
Fonte: Reflexões Franciscanas
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