terça-feira, 4 de outubro de 2011

São Francisco de Assis: uma comemoração?!

Frei Hermógenes Harada, OFM (In memoriam)

Estamos a co-memorar a solenidade de São Francisco de Assis. O título, “À Margem de uma Comemoração”, além de ser um lugar comum, soa um tanto ‘por fora’, insinuando algo como ficar de fora, sem se engajar. De fato, na presente reflexão, a gente fica por fora da comemoração. É que comemorar significa recordar. Na recordação se traz novamente ao coração, se acorda a força real e originária daquilo que perfaz o âmago de uma vida, no nosso caso, da vida de São Francisco de Assis. Como a gente não dá conta de uma tal cordialização, se fica à margem, estranhando uma porção de coisas que parecem naturais em São Francisco de Assis.

Como essa porção de coisas estranhas em São Francisco é demais, vamos apenas estranhar uma única coisa que causou em São Francisco a seguinte declaração: Certa vez disse São Francisco a um noviço: “O Imperador Carlos Magno, Rolando e Olivier, todos paladinos e homens valorosos, que foram poderosos nos combates, perseguiram os infiéis até a morte, não poupando suores nem fadigas, alcançando assim memoráveis vitórias; do mesmo modo, os nossos santos mártires deram a vida pela fé em Cristo. Atualmente há muitos que pretendem alcançar honras e louvores somente por terem narrado os feitos destes heróis. Também, entre nós, há muitos que desejariam obter honras e louvor, pregando e narrando o que obraram estes Santos”... “Só é sábio o homem que executa bom trabalho, só é bom orador e religioso quem se exercita no seu trabalho, pois, pelos frutos se conhece a árvore”.

O texto não tem em si nada de estranho. O que São Francisco nos diz é bem conhecido. Também nós dizemos com ênfase: Não basta falar, não adianta saber tantas teorias, é necessário fazer, praticar, viver o que se diz. Só que, nessa nossa fala enfática acerca do fazer, da prática e do vivenciar, parece haver mais fala e mais teoria do que um real fazer, praticar e viver. De tal sorte que a fala medieval de São Francisco é aceita como algo já conhecido, sabido de antemão, fácil de se compreender. Certamente, na nossa teoria, São Francisco diz o óbvio: basta de blá-blá-blá, basta de teorias alienadas e infinitas discussões, basta de pregações, conferências e congressos: o que importa é fazer, agir mesmo! Mas, como entender esse fazer, esse agir mesmo em São Francisco? Responde o Mestre Francisco: “Só é sábio o homem que executa bom trabalho, só é bom orador e religioso quem se exercita no seu trabalho, pois, pelos frutos se conhece a árvore”.

Mas, como é executar um bom trabalho? Como é exercitar-se no trabalho, a ponto de o trabalho dar fruto? Como estamos acostumados a classificar a São Francisco como santo da suavidade, esquecemos por completo que ele foi guerreiro, que ambicionou ser cavaleiro e se exercitou na arte de paladino, que é, na realidade, uma arte de matar. Por isso, quando São Francisco fala do Imperador Carlos Magno, Rolando e Olivier, como de paladinos e homens valorosos que foram poderosos nos combates, perseguiram os inimigos até a morte, não está falando como nós o faríamos, assim à margem, de leve, como que num sentido burguês, esportivo, mas sim a partir de uma experiência real e perigosa de luta corpo a corpo.

Quando hoje dizemos que a nossa vida espiritual é como uma luta de cavaleiros, estamos usando a palavra 'luta' num sentido figurado. Quando São Francisco diz o mesmo, também ele, está usando a palavra luta de cavaleiros num sentido figurado. Mas, no nosso caso, a própria compreensão da palavra luta já é figurada, pois, não temos experiência real de uma luta mortal. Ao passo que, em São Francisco a compreensão do que seja luta não é figurada, mas sim real. Para compreender o quê e como é fazer e agir em São Francisco, é importante, pois, compreender em que consiste a luta de um cavaleiro medieval

A arma principal da luta era a espada, portanto, a arma branca. Hoje, temos uma luta similar que é o esporte chamado 'esgrima'. Neste esporte há muito empenho, um longo período de dura aprendizagem, exercícios exigentes, na competição, muitas combatividades. No entanto, embora seja uma luta, nele não existe mais aquele elemento essencialmente real que caracteriza a luta do cavaleiro: o combate para matar. Este era uma luta corpo a corpo, para valer. A tal ponto que se eu não matasse o oponente, se estaria morto!

A seriedade mortal de uma tal luta, podemos imaginá-la se nos colocarmos encurralados num beco sem saída, diante de uma arma branca afiada, como uma navalha, na mão de um assaltante-assassino. Há ali urgência e acuidade de uma imposição inexorável, friamente imediata, que nos atinge todo o ser até o âmago: sentimos um calafrio atravessar todo o nosso ser.

Numa tal urgência todo um mudo de possibilidade se reduz à pobreza de uma única necessidade essencial. Toda a máscara, todos os enfeites, todos os suportes acessórios caem por terra. Não há mais espaço para preferências. Não posso brincar de experimentação para ver se dá certo. Não posso adiar a decisão para quando eu me sentir mais à vontade. Não posso me dar ao luxo de me arrepender do passado, me culpar, me censurar, amaldiçoar o futuro, lamentar a situação presente, culpando os outros. Não me adianta nada me desculpar e desanimar, alegando que sou fraco. Tudo se reduz nítida e inexoravelmente à real urgência de necessidade material: de corpo a alma, sem nada possuir, lançar-me à luta, agora, aqui, num único lance, numa determinação radical de um salto que não olha para trás e que só se concentra no essencial.

Essa determinação que um dos discípulos mais iluminados de São Francisco, frei Egídio, chama de boa-vontade, é o que caracteriza os paladinos e homens valorosos, que foram poderosos nos combates, perseguiram os infiéis até as morte, não poupando suores e fadigas.

O cavaleiro vivia perigosamente a determinação contínua para o salto mortal. Em caminhando, em se exercitando, em se distraindo, em dormindo, a cada instante, executava a plena atenção de alerta e disponibilidade para a boa-vontade do combate mortal. É essa determinação de luta que empresta ao seu cotidiano a seriedade e o realismo de um exercício para matar ou morrer.

Assim, mesmo num exercício, o mais banal e o mais corriqueiro, num fazer, o mais elementar e familiarizado, ele trabalhava em vista desse momento supremo da urgência mortal. Não havia no seu trabalho nenhuma rotina mecânica, nenhum supérfluo, nenhuma brincadeira, nenhum ‘fazer de conta quê’. Não se dava ao luxo das aparências e distrações, pois, a sua vida dependia de como no cotidiano, nos exercícios simulados, executava o trabalho de ser realmente, de dar um fruto real e eficiente.

Ser cavaleiro, isto é, estar realmente à disposição da determinação do salto num combate mortal, só se conseguia num árduo trabalho, demorado e bem executado. Trabalho buscado livremente, trabalho estudado, aprendido a partir do elementar, passo a passo, em exercícios repetidos, tenazmente empenhado e inteligentes. Por isso, para ser cavaleiro, o importante não era tanto a vivência, a repercussão do trabalho, o show de um combate numa competição festiva, mas sim a fidelidade, a inteligência e a vontade, o gosto do trabalho cotidiano, operário, árduo e paciente, com a mira claramente fixa no essencial: na realidade elementar da luta de vida ou morte.

É mais ou menos esse o sentido da palavra luta que São Francisco toma por modelo para a luta e o trabalho no crescimento da vida espiritual.

Nós, hodiernos, narramos os feitos desses heróis. Ou melhor, nem sequer narramos os seus feitos, pois, tudo que fizeram nos é conhecido; conhecido a partir do nosso fazer e da nossa prática, a tal ponto de não mais estranharmos que nem sequer temos a dificuldade de compreender o que eles entendiam por fazer, lutar, agir.

No entanto, para compreender que realidade é a vida espiritual em São Francisco de Assis, seria necessário antes, estranhar a intensidade e a radicalidade da compreensão do fazer, do executar, do exercitar, do trabalho, que era familiar a São Francisco, cuja busca jamais deixou de ter o cunho das determinação mortal de um cavaleiro medieval.

Talvez, um tal estranhamento nos possa acordar e nos dar um olho cordial para ver que o nosso fazer e o nosso agir é muito mais falar, narrar, dizer e aplicar o que ideamos e sentimos do que um trabalho real para ser.

Comemorar os antepassados talvez só o podemos à margem, no estranhamento. Já seria muito se hoje pudéssemos, ao menos, estranhar os nossos antepassados. Mas, se o estranhamento nos pegar, talvez o antepassado deixe de ser ingenuamente um antiquado “já-era”, para surgir como a promessa de um futuro ainda não alcançado e, quem sabe, jamais alcançável, o futuro, o advento de uma nascividade primordial que, através de todos os tempos, acorda os corações na alegria da busca.

Comemorando o nascimento antepassado de São Francisco de Assis, recordemos, hoje, que um verdadeiro antepassado jamais é superado, a ponto de nós, os atuais, podermos ir adiante, deixando-o para trás.

Pois, quem realmente combateu o bom combate, na luta mortal da vida na terra dos homens, jamais chegará a ir adiante a modo de um consumidor que está na atualidade da moda, mas sentirá cada vez mais quão difícil é realmente lutar, ser e ir ao fundo da existência humana.

Talvez possamos aplicar a nós e a São Francisco de Assis o que o filósofo Kierkegaard disse, se referindo a seus contemporâneos e a Abraão; “Ninguém hoje se detém na fé. Vai-se mais longe, adiante. Passarei, sem dúvida, por néscio se me ocorrer perguntar para onde por tal rumo se caminha. Mas, com certeza, darei prova de correção e cultura admitindo que cada um tem fé, pois, do contrário, seria singular dizer que se vai longe, adiante. Não sucedia assim antigamente. Era então a fé um compromisso aceito para a vida inteira. Porque, pensava-se, a aptidão para crer não se adquire em poucos dias, ou escassas semanas. Quando, depois de ter combatido em luta leal e conservado a fé, o velho lutador experimentado chegava ao ocaso da vida, o coração mantinha suficiente juventude para não esquecer o tremor e a angústia que o tinham disciplinado, enquanto jovem, e que o homem maduro havia dominado, porque daqueles ninguém se livra inteiramente a menos que consiga ir mais longe desde muito cedo. O término onde chegavam essa veneráveis figuras é hoje o ponto de partida para cada um ir mais longe, adiante”. T

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