Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Chamados a colaborar na construção da Igreja, como sacramento da salvação de todos os homens, e constituídos pelo Batismo e pela Profissão, testemunhas e instrumentos de sua missão, os franciscanos seculares anunciam Cristo pela vida e pela palavra ( cf. Regra 6). Seu apostolado preferencial é o testemunho pessoal no ambiente em que vivem e o serviço para a edificação do Reino de Deus nas realidades terrestres (Constituições Gerais da OFS, art. 17, 1).
1. Vivemos no coração da Igreja. Nós, franciscanos, não formamos um grupo “à parte”. Temos plena consciência de que nascemos no seio da Igreja, de que Francisco nos queria ver servos e súditos desta mesma Igreja. Pensamos na Igreja com seus representantes oficiais colocados aí pelo Espírito e pensamos nessa imensa Igreja, Corpo Místico de Cristo, essa Igreja povo de Deus que caminha através dos tempos tentando edificar o Reino de Deus, essa Igreja que é sacramento, sinal de um mundo novo que é maior do que ela. Alimentamo-nos da vida de Deus no seio da Igreja, somos fiéis ao que para nos determina o sucessor de Pedro e queremos encontrar caminhos novos.
2. Conhecemos as transformações que vive o mundo em nossos tempos e sabemos que também a Igreja busca caminhos novos. Temos em elevado apreço o Documento de Aparecida que nos convida a sermos discípulos missionários. Somos, no entanto, convidados a olhar a realidade. Ficamos perplexos com o esvaziamento de muitas de nossas paróquias e, ao mesmo tempo, com as massas que acorrem para certas manifestações religiosas empreendidas por pessoas com carisma. Temos a impressão que as famílias e os jovens escaparam de nós. Há uma séria diminuição de pessoas que pedem os sacramentos do batismo e do matrimônio. Causa-nos admiração um evento como a passeata dos homossexuais em São Paulo reunindo mais de três milhões de pessoas. Não conseguimos acompanhar as famílias e nossa pastoral dos jovens está estacionada. Não se trata de querer ser pessimista, mas de olhar o que se passa.
3. Nossos grupos de franciscanos seculares vão fazendo sua caminhada. Há viçosas fraternidades novas, mais simples, com pessoas mais vocacionadas, grupos talvez menos devocionalistas. Lutamos pela conscientização do tema da identidade franciscana secular e aquele do senso de pertença. Somos obrigados, no entanto, a reconhecer um generalizado envelhecimento de não poucas fraternidades. Não desanimamos porque a obra não depende de nós. É do Senhor. Sempre confiantes no amanhã, porque está nas mãos de Deus e porque estamos unidos a Pedro e sua barca, temos, no entanto, o dever de nos interrogar a respeito de nossa vida e de nossa presença na Igreja.
4. Antes de mais nada temos o tesouro de nossas fraternidades e irmãos que se dispõem a servir, a lavar os pés uns dos outros e oferecerem seus préstimos ao evangelho. Na realidade constituímos um movimento de retorno ao Evangelho, quanto possível em sua pureza mais profunda. Vivemos num mundo plural. Nossas fraternidades serão lugares de exame dos grandes temas da fé e do mundo. O que é crer? Esperar o quê? O que significa escutar o Senhor hoje? Qual a missão do sacerdote? Como receber os sacramentos em plena veracidade? Nossas fraternidades precisam organizar dias de estudo, de aprofundados retiros. Somos convidados a pensar, discernir, não repetir por repetir. Não somos partidários de uma religião à la carte. Na Igreja somos pessoas de reflexão e buscar colocar vida em nosso interior. Não queremos viver derramados nas coisas.
5. Num mundo individualista, a Ordem Franciscana Secular viverá intensamente a fraternidade. Não apenas uma fraternidade interna, mas aberta ao plural, aos que chegam em nossos territórios, em nossa vizinhança, aos que conhecem percalços na vida no casamento, na falta de sentido de viver. Os que nos vêem deveriam poder dizer: “Vede como eles se amam!”
6. Precisamos de leigos maduros. Insistimos no adjetivo maduro. A maturidade cristã e franciscana serão perseguidas com garra: leigos que sejam leigos, leigos que gostem de estudar e de aprofundar sua fé, leigos que respondam para si e para os outros as questões existências: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? O que é viver com discípulo hoje?
7. Num mundo de mediocridade, num tempo em que se satisfaz apenas com as performances financeiras, sucesso exteriores os franciscanos seculares tendem à santidade. Isto se manifesta no cotidiano de vidas despojadas, alegres, cheias de esperança.
8. Não podemos esperar que as pessoas cheguem a nós. Há pistas que precisam ser descobertas entre nossas fraternidades e as pessoas lá onde vivem. Não seria esse o sentido de uma opção pela missão e pela evangelização? Leigos desejosos de seguir Francisco que se aproximam de nossas fraternidades sempre perguntarão: “O que vocês fazem pelos outros?”. Não querem apenas ser recebidos num ninho quente.
9. O centro de tudo é Cristo, vivo, ressuscitado, presente entre nós. Vivemos nele, nele existimos. Sem pieguice vivemos uma vida cristã. Não podemos nos dar por satisfeitos com uma pastoral sem alma, burocrática, feita de eventos mais ou menos grandiloqüentes. Não colaboraremos com um pastoral meramente sacramenalista. Temos vontade, por vezes, de retomar o espírito de evangelização anterior à conversão de Constantino ao cristianismo. Gostaríamos de poder ajudar a construir uma Igreja na lentidão da conversão. Queremos dar a nossa colaboração para que os sacramentos sejam efetivamente epifania do divino. De modo especial batismo, eucaristia e matrimônio precisam ser recebidos como eventos transformadores de existências e não meros ritos de passagem. Não queremos nos centrar na pastoral dos sacramentos, mas sabemos que eles são expressão de uma conversão. Desejamos fazer com as pessoas redescubram de verdade a proximidade de Cristo nesses sacramentos que serão recebidos com plena consciência. Eles deixaram de ser evangélicos e se tornaram ritos sem vida.
10. Salvador Valadez Fuentes, autor mexicano, em seu Espiritualidade Pastoral – Como superar uma pastoral “sem alma” ( Paulinas, 2008) num texto corajoso e provocador mostrando Paulo, como modelo de agente de pastoral, fala daquilo que os cristãos e agentes de pastoral podem fazer: recuperar a radicalidade e a surpresa de ser cristãos e apóstolos; cultivar um substrato de valores humanos onde se encarna a graça: coerência, sinceridade, lealdade, convicção, liberdade, desinteresse; respeitar e alentar os ritmos nos processos de fé e de conversão pessoal e comunitária; valorizar a cruz como elemento fecundo e de autenticidade à nossa missão; saber viver no conflito; promover a solidariedade eclesial em todos os níveis; centrar nossa vida cristã e ministério pastoral na fé, na esperança e na caridade, traduzidas em atitudes concretas; ter uma visão eclesial enraizada na Trindade como fundamento último de todo ministério pastoral; urgir o aspecto missionário da fé; entender e assumir a vida cristã como um combate; encarnar, à maneira de Paulo, as atitudes fundamentais de um agente: força, valentia, liberdade, alegria, recuperar a consciência de ser enviados; não alimentar cobiças nem pretensão de glória; exercer a autoridade como serviço amável; amar com um amor real até à morte, oferecer cuidados de bom pastor às comunidades” ( p. 50). Este texto nos fala de uma vida de missão e de pastoral cheia de mística, de fogo interior.
11. Estamos todos convencidos da importância da família em nossa vida pessoal. Como franciscanos seculares compreendemos bem a problemática desta pequena célula do mundo. Não podemos nos sentir alheios ao tema. O amanhã da humanidade, no dizer de João Paulo II, passa pela família. A Regra afirma: “Em sua família vivam o espírito franciscano de paz, de fidelidade e de respeito à vida, esforçando-se por fazer dela sinal de um mundo já renovado em Cristo. Os esposos, em particular, vivendo as graças do matrimônio, testemunhem no mundo o amor de Cristo por sua Igreja. Mediante uma educação cristã dos filhos, atentos à vocação de cada um, caminhem alegremente com eles em seu itinerário humano e espiritual” (n.17). Evangelizar nossa família, a família dos filhos, as famílias de fora. Na medida do possível seremos evangelizadores de nossa família e das famílias dos irmãos da fraternidade: uma comunidade de vida e de amor, indo do individualismo ao personalismo, lugar de encontro e de estruturação da pessoa, lugar de alimentação e de crescimento, espaço de acolhimento e de encontros, Igreja doméstica sem pieguice.
12. Não podemos imaginar o amanhã da Igreja e da Ordem sem liderança capacitadas, homens e mulheres, capazes de ler os sinais dos tempos, pessoas que reflitam e que coloquem por escrito aquilo que é o fruto de suas preocupações com o homem e o mundo. A Ordem Franciscana Secular terá preocupação de ter irmãos que façam cursos que valham a pena e se coloquem no meio do fogo.
13. Somos fraternidades em estado de missão. A fraternidade é o coração de nosso carisma. A primeira indicação dada pelo Senhor a respeito da credibilidade dos seus discipulos foi o famoso “vede como eles se amam”. O primeiro testemunho é dado por uma vida autenticamente fraterna, tanto na primeira como na terceira ordem. Deus nos ama, nos congrega e nos envia. Um autor italiano, Domenico Paoletti, OFM Conv., escrevendo a respeito da missão franciscana hoje no ocidente escreve: “A fé cristã encarnada no testemunho da fraternidade franciscana vivida com alegria e gosto é sinal luminoso de que evangeliza por irradiação e vive a missão mais como revelação do amor de Deus do que como um serviço funcional dirigido para particulares necessidades. Assim, a missão franciscana é antes de tudo tornar presente e lembrar que a comunhão fraterna, enquanto tal, já é missão pelo fato de contribuir diretamente para a obra da nova evangelização” (Miscellanea Francescana, t. 109, p.424). Mas atenção: uma fraternidade bem constituída, sinal do reino, levará também seus membros a ir dois a dois pelo mundo. Embora, a fraternidade seja, no dizer de alguém, “narração humana do amor divino”, será preciso ir, sempre ir.
14. Referindo-se mais aos frades, o autor do precedente estudo, continua: “A fraternidade, coração do carisma e da missão franciscana, hoje goza de particular atenção numa sociedade da técnica e dos relacionamentos friamente virtuais. A missão para Francisco, na escola do evangelho, é sempre o andar “dois a dois”. Nunca envia um frade sozinho pelo mundo. Os dois vão juntos reconciliados e levando reconciliação. A missionariedade é conseqüência da fraternidade “exodal” (de êxodo) e itinerante, características da fraternidade franciscana, que se põe em contraste com a tradicional “stabilitas”. Para os frades menores o mundo é seu claustro e cada homem seu irmão” Ela foi querida por seu fundador como “fraternidade extática” (em estado de êxtase) e não estática ou estética, como por vezes parece ser reduzida segundo cânones impostos pela cultura contemporânea da imagem: um frade com sandálias num claustro e cercado de gerânios. O centro da fraternidade franciscana está fora dela: em Deus e além dos limites de nosso mundo local e auto-referencial (...) A missão é, na realidade fecunda, somente quando brota de uma vida fraterna de profunda espessura evangélica que dá ao mundo o testemunho do amor do Deus Trindade. A presença-provocação da fraternidade franciscana hoje é uma verdadeira missão abrangente ao se apresentar como uma teologia narrativa do modo de amar de Deus. Trata-se de um “eloqüente” falar de Deus” (p. 425).
15. P. G. Cabra, citado pelo autor que mencionamos antes, escreve linhas contundentes sobre a fraternidade e sua ligação com o mistério da Trindade: “A um Deus comunhão corresponde uma igreja comunhão e tal exige a criação de comunidades fraternas, tanto as religiosas quanto as familiares, onde a realidade comunional se manifesta de forma legível. Uma Igreja sem fraternidades realizadas pode fazer a suspeita da pouca importância da Trindade. Que adianta confessar um Deus comunhão, quando na terra cada um pensa nos seus sucessos, quando a dimensão fraterna é sobrepujada pela dimensão individualista, quando a fraternidade é vista como um ideal abstrato, quando a eficiência imediata torna-se a preocupação principal, colocando na sombra todas as intenções que partam da fraternidade” (. P. 425).
16. Que dizer ainda? O amanhã de nossas fraternidades depende do hoje de nossos empenhos. A casa construída na medida em que o Senhor age. Não somos donos de tudo. Mas sabemos que tudo, dependendo de Deus, depende também de nós. Trata-se voltar ao primeiro amor e sentir no fundo da alma uma vontade efetiva de ir, de conversar, confabular com o mundo que nos escapa : jovens, famílias, credos. Não podemos administrar apenas o caos, o mundo daqueles que hoje estão cansados. Fraternidades missionárias, mas fraternidades que trabalhem na pastoral com discernimento e com espírito crítico. Não se trata de uma mera sacramentalizaçao, mas de mostrar às pessoas um mundo do beleza que conseguimos vislumbrar com Francisco e seu gênero de vida.
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