Por Frei Almir Ribeiro Guimarães
O fruto da Sagrada Escritura não é um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna. De fato, a Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual estão escritas as palavras de vida eterna, porque não só acreditamos mas também possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados todos os nossos desejos (São Boaventura, Breviloquium).
1. Viver, viver em plenitude, viver no Espírito e do Espírito! Viver com viço e com vigor. Não somos seres banais. Estamos no mundo, mas já deixamos o mundo. Somos criaturas novas. Tivemos nosso interior visitado pelo Espírito e, no dia a dia de nossas existências, levamos uma vida que designamos de “espiritual”. Esse nosso soerguimento lembra a palavra de Paulo, que nos faz tanto bem: “Vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus” (Cl 3,3). Carregamos em vasos de barro essa vida nova que borbulha em nós. Solteiros ou casados, religiosos ou sacerdotes, homens ou mulheres, jovens e idosos, serventes de pedreiros e altos executivos, levamos uma vida espiritual. Temos pleníssima consciência que esse “estado” novo precisa de nutrimento, de alimentação. Do contrário, as pessoas rirão de nós, como se fala na comparação da casa construída sobre a areia e a rocha. Começamos com tanto entusiasmo, mas foi tudo tão fugaz, tão sem base. A vida nos ensinou que precisamos nos retirar para a oração, tentar estratégias de seguimento de Jesus, praticar o amor fraterno. A primeira e mais fundamental das fontes de nutrimento da vida espiritual é encontro com a Palavra.
2. Nos últimos anos sentimos que a Igreja vem lançando insistente convite no sentido de que mais nos aproximemos da Palavra. Bento XVI, no final da Exortação Apostólica pós-sinodal Verbum Domini, escrevia: “Cada um dos nossos dias seja plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo do Pai feito carne. Ele está no início e fim de tudo, e n’Ele todas as coisas subsistem (cf Cl 1,17). Façamos silêncio para ouvir a Palavra do Senhor e meditá-la, a fim de que a mesma, através da ação eficaz do Espírito Santo, continue a habitar e a viver em nós e a falar-nos ao longo de todos os dias de nossa vida. Desta forma, a Igreja sempre se renova e rejuvenesce graças à Palavra do Senhor, que permanece eternamente (cf.1Pd 1, 25; Is 40,8). Assim também nós poderemos entrar no esplêndido diálogo nupcial com que se encerra a Sagrada Escritura: “O Espírito e a Esposa dizem: ‘Vem”! E, aquele que ouve, diga: ‘Vem’! [...] O que dá testemunho destas coisas diz: ‘Sim, Eu venho em breve’! Amém. Vem Senhor Jesus!” (Ap 22, 17-20) (n. 124). A Palavra nos rejuvenesce.
3. Cristãos e religiosos temos incontáveis momentos de contato com a Palavra: na celebração da missa, na recitação da liturgia das horas, na celebração dos sacramentos, no exercício da lectio divina, na leitura particular das Escrituras. Longe de nós todo espírito fundamentalista e toda mentalidade superficial na abordagem da Palavra. Estamos sendo convidados a nos aproximar de maneira atenciosa, nova e humilde dessa Palavra (desdobrada em palavras) que pode nos tirar da mediocridade da vida. Fato consolador e encorajador: ao longo de toda a nossa vida somos alimentados por essa Palavra que nutre os famintos e mata a sede da garganta dos que têm a garganta ávida de Deus.
4. Sim, hoje se reconhece, ao menos teoricamente, a centralidade da Palavra de Deus. Em todas as atividades de formação e de pastoral se busca dar lugar para a escuta. Interessantes reflexões do Editorial da “Revista del Clero Italiano” (5/2010) podem nos ajudar. Hoje, o primeiro lugar não é dado à evangelização, mas à escuta. Jesus o havia firmemente lembrando a Marta que ela perdia o fio da meada da vida ocupando-se exageradamente de atividades exteriores. Muitos cristãos, religiosos e sacerdotes dizem que estão sobrecarregados e que não podem se dedicar mais intensamente à escuta. Agentes de pastoral, cristãos, religiosos e sacerdotes não podem dizer que o sentido de suas vidas seja o cansaço advindo do trabalho. “O cansaço não enche de sentido uma existência. As muitas coisas empreendidas podem esconder o medo de alguém se interrogar sobre o modo de construir sua vida e podem dar a ilusão – porque mortos de cansaço – que padres (também leigos) deram sua colaboração para a construção do Reino!”.
5. Rezamos a Liturgia das Horas, celebramos ou participamos de sacramentos, pregamos ao povo a Palavra. A realização dessas atividades, de per si, não enche nosso coração. Há sempre o risco de falarmos da Palavra sem sermos habitados por ela. O exagero de atividades pode nos distrair da escuta da Palavra de Deus e da escuta das pessoas. Meditação, estudo, reflexão, oração são fundamentais para manter o patrimônio da fé com características de frescor e de persuasão. Através dessa tentativa de escuta vamos fazendo uma experiência humana banhada pela Palavra, ganhando sabedoria que chega até o agir cotidiano tornando significativo o trabalho pastoral ou simplesmente a vida cristã. Nada mais nocivo do que uma frenética atividade seja na pastoral, nas causas abraçadas pelos religiosos, na vida cristã, na construção da família, atividade privada de alma e de direcionamento, na construção da família. Não dá para viver uma vida cristã, exercer o pastoreio, assistir a grupos quando não se tem alma, entusiasmo, “gás” e se caminha a esmo. Sentimos que nossa vida espiritual e nosso agir pastoral precisam provir da fonte do coração.
6. O autor do Editorial da “Rivista del Clero” a que nos referimos, analisando evidentemente a realidade da Igreja na Itália, escreve: “Minha impressão, de fato, é que uma espécie de resignada canseira esteja se infiltrando em nossas comunidades. Daí o perigo de buscar a “sobrevivência” arquitetando estratégias secundárias, de fôlego curto. É como se faltasse, de um lado a verdadeira esperança evangélica e, de outro, como se as pessoas se contentassem com um conhecimento superficial e fragmentado da sociedade em que atuamos. E assim, não obstante sua boa vontade, o agente de pastoral, pressionado pela urgência de tarefas, dispersivas e dispersantes, sobrecarregado de atividades que não agradam porque infrutuosas, corre o risco de chegar ao desalento. A pastoral, em sua totalidade, precisa ser revisitada e renovada. Daí na necessidade da escuta assídua da Palavra, escuta do mundo de hoje e escuta das pessoas.
7. Vivemos um tempo de transição. Fala-se em redesenhamento das instituições, da pastoral, da vida cristã no mundo, da vida consagrada. As vestes que usávamos se tornaram apertadas. Não podemos nos contentar com pequenos arranjos que dão a impressão de resolver o presente, o momento. Seria pouco prudente tomar decisões apressadas num tempo de transição. Não conseguimos respostas para nossas indagações. Melhor formular bem as perguntas, colocar interrogações pertinentes. Desde os anos 70 do século passado fomos fazendo “experiências”. Os sacerdotes continuam fazendo o que sempre fizeram. O que sentimos é que as respostas precisarão ser dadas através de uma escuta nova e séria. Nada de incessantemente colocar remendo novo em trapos velhos. Precisamos conhecer as raízes e as motivações da “crise” que vivemos, da turbulência que atravessamos. Ouvir as pessoas, ouvir o bate-estaca do mundo, “ouvir” o grito dos acontecimentos e a Palavra. Nosso tempo é tempo de escuta, mais de escuta do que fala, mas de escuta do que de invenção de estratégias pastorais. Necessário se faz cuidar para que uma decisão apressada nunca venha a ser tomada como solução. Estamos buscando.
8. Necessitamos tentar escutar. Soa aos nossos ouvidos a palavra de Pedro dirigida a Jesus: “Só tens palavras de vida eterna”. O arcebispo de Gênova, na Itália, Cardeal Angelo Bagnasco, escreveu Carta Pastoral (2009-2010) sobre as fontes da vida espiritual: Caminhar pelas sendas do Espírito. Lemos ali: “No imenso mercado de tantas palavras, o homem moderno busca a Palavra, como o comerciante que busca uma pérola preciosa. A Palavra da qual todos têm necessidade aponta para o sentido último deste frágil universo, de nossa tormentosa história. O homem busca luz a respeito da morte e da dor, especialmente quando esta última bate à porta. É desta palavra que todos têm desejo. As outras palavras ganham sentido na medida em que servem a este palavra decisiva”.
9. Abeirar-se da Palavra… Do Evangelho emerge o semblante de Cristo: suas palavras, seus silêncios, seus gestos, seus sentimentos, seu relacionamento com o Pai. Todos os que buscam viver intensamente sua vida espiritual sempre buscaram esta fonte cristalina. Santo Inácio de Antioquia, dizia: “Entrego-me ao Evangelho como à carne de Cristo”. Os bispos italianos em documento recente escreviam: “Haveremos de nos nutrir da Palavra de Deus suspirando por ela como a criança busca o peito da mãe: para a vitalidade da Igreja esta é uma experiência essencial”.
10. Cotidianamente nos acercaremos de um trecho do evangelho. Para tanto basta fé e um pouco de boa vontade. É como expor-se à claridade do sol para tornarmo-nos luminosos. Dom Angelo Bagnasco afirma: “O Evangelho ‘frequentado’ todos os dias passa a ser nossa casa acolhedora mesmo sendo ele exigente e colocando nossa alma exposta”. O Evangelho não é um livro entre outros livros. É a Palavra de Deus transformado em vida para ser contemplada e narrada. Ele tem uma força que transforma e é derramada no fiel. Ele precisa ser recebido no mais profundo da esperança. Vale refletir sobre estas palavras de André Gide, um agnóstico francês: “Não é porque me disseram que tu és o Filho de Deus que escuto tua palavra: tua palavra é bela acima de qualquer palavra humana e por isso reconheço que és o Filho de Deus”.
11. Jesus continua conosco a nos explicar as Escrituras, com seu Espírito e na Igreja. Por isso lemos a Bíblia na Igreja e com a Igreja para não correr o risco de interpretações meramente subjetivas e distorcidas. Madeleine Delbrêl, conhecida leiga autora de livros de espiritualidade, dizia que não se deve ler a Bíblia querendo colocá-la moda de nossos dias na convicção de podemos “retocar” a Deus.
12. As palavras dos homens, se não forem mera tagarelice, ajudam a intensificar nossa vida espiritual. Entre as muitas palavras que nos são ditas necessário identificar aquelas que são prenhes de sabedoria, que nos ajudam a trilhar o caminho da verdade, que nos iluminam a nos conhecer a nós mesmos. Sabemos que as palavras humanas podem veicular verdade e comunicação, mas podem igualmente ser instrumento de mentira, de engano e de violência. Homens que desde antiguidade até hoje escreveram com inteligência e humildade iluminam a humanidade. Devem ser tratados com atenção e gratidão. Esses homens de alguma forma exprimem uma palavra de Deus. Insistimos: há histórias humanas, aventuras heroicas, que nos falam de Deus e que alimentam a nossa vida espiritual, mesmo não sendo cristãos. Pensamos em tantos e tantas do passado e do presente, apóstolos da não violência, do amor fraterno, da partilha que gritam aos nossos ouvidos palavras de Deus. Pensamos em médicos, cientistas, biólogos que falam a fala de Deus com sua ciência e sua postura decididamente em favor do homem.
13. Não queremos perder o objetivo principal destas linhas. Estamos nos acercando de uma das fontes da vida espiritual que é a Palavra de Deus. Por isso, parece fundamental que em nossas fraternidades sejamos decididos de fixar, durante a semana, alguns dias ao menos, para um encontro comunitário com a Palavra. Queremos aqui transcrever algumas linhas do Ministro Geral dos Menores do seu texto: “Guiados pela Palavra, mendicantes de sentido”: “A leitura orante da Palavra é arte que procura realizar a passagem do texto bíblico para a vida e se apresenta como precioso instrumento que pode ajudar-nos a superar o abismo que muitas vezes percebemos entre fé e vida, entre espiritualidade e cotidianidade. A leitura orante da Palavra não é uma simples prática de piedade; é um método que visa a pôr em prática a palavra escutada; é uma hermenêutica existencial da Escritura que, antes de mais nada, leva o fiel a buscar Cristo na página bíblica, a pôr a própria vida em diálogo com a pessoa de Cristo que se nos revela e, finalmente, a ver iluminada com nova luz a própria vida cotidiana”.
14. Nada mais simples do organizar um momento de leitura orante da Biblia:
• Momentos de silencio diante de uma cruz, de uma imagem de Cristo ou do Santíssimo.
• Canto para fazer adensar em nosso interior o Espírito e a presença daquele que busca nos falar.
• Leitura de um texto (não longo de mais)
• Momentos de silêncio
• Talvez leitura de um texto de um Padre da Igreja ou de algum outro documento espiritual
• Silêncio, reflexão e troca de ideias
• Canto final
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